Marília Mendonça e os Brasis

 

 

 

Orgulho e Preconceito

Por Rogerio Haesbaert 

Confesso que fui conhecer a “rainha da sofrência”, Marília Mendonça, após a tragédia que comoveu o país no dia de ontem com a queda do avião e a morte de cinco pessoas em Minas Gerais. De repente me dei conta de que não conhecia a cantora mais ouvida do país nos últimos anos, talvez pela minha faixa geracional, pela afinidade musical (e o afastamento deliberado da “sofrência”) e/ou, sejamos francos, por certo preconceito com o sentimentalismo à flor da pele da maior parte do nosso povo (do qual, de algum modo, por minhas origens, ainda me sinto parte).

É por aí que travo uma autocrítica com meu/nosso distanciamento desse “Brasil profundo” que canta, chora e se expressa na identificação com a voz contundente de Marília e suas letras que falam de aparentes banalidades do cotidiano, de amor/amantes, paixão, traição, raiva e prazer. Um “Brasil profundo” que, no caso da “rainha da sofrência”, também realizou algum diálogo com a tradição da MPB, voz elogiada por “clássicos” como Gal (com quem gravou), Gil e Caetano. Quando me enviam um vídeo com 400 milhões de visualizações me dou conta, de fato, do fenômeno popular que era a cantora. Embora não me identifique com a maioria das melodias e letras, faço um esforço para praticar algo que sempre defendi (e que na prática não é fácil): “colocar-se no lugar do Outro”, tentar compreender a perspectiva desde onde o outro fala, a partir de seu contexto geográfico e temporal.

Deparo-me então com o vasto “sertão” brasileiro, que é bem mais contraditório do que nosso “senso comum intelectual” faz crer: um mar do agronegócio melodramático e conservador. Lembro das músicas que meu pai escutava todas as madrugadas no interior do Rio Grande do Sul e me translado para este “outro” Brasil que o Centro sudestino das maiores metrópoles, às vezes por puro preconceito neocolonial, resolveu menosprezar. Goiânia, onde uma multidão deve levar hoje seu tributo à cantora, é uma das metrópoles mais dinâmicas do país e uma clara extensão deste Centro-Sul que às vezes ainda reduzimos à “região concentrada” Sul-Sudeste.

Pois é neste/deste “sertão” que brota o sentimentalismo e as canções de uma Marília Mendonça - no meio do “agro é pop” mas também um pouco além dele. Descubro que até o New York Times (descontada a “colonialidade” da referência), ao relatar a tragédia, afirma: “sentimentais ou não, suas canções oferecem uma perspectiva das mulheres que não tem sido muito escutada na cultura machista sertaneja, e que fez de Mendonça a voz de liderança em um novo subgênero denominado ‘feminejo’ – música por e para mulheres “. Ressaltam também o fato de ela ter sido reconhecida pelo prêmio do Grammy latino de melhor música sertaneja. 

Resumindo, e continuando minha/nossa autocrítica, para além do sentido que sua música e suas letras pessoalmente nos trazem (e que pode ser pouco), há por trás de um fenômeno como esse a revelação de uma face deste Brasil mais fundo, de um povo (incluindo as classes mais pobres e sua enorme audiência) que comunga dos sentimentos simples enaltecidos por Marília, e que de algum modo se diverte no sofrimento, canalizando sua imensa e múltipla “sofrência” para o âmbito mais restrito do amor romântico, por vezes uma última seara onde ainda pode haver prazer e sobre a qual imaginam deter alguma autonomia. Uma espécie de fuga, dirão muitos, mas também, sem dúvida, do orgulho que lhes resta, na identificação com a figura despojada e sincera de Marília, uma “rainha” que também reivindicou, a seu modo, o orgulho e o poder da mulher numa sociedade profundamente preconceituosa, patriarcal e machista.  

Fonte: https://www.facebook.com/rogerio.haesbaert/posts/10227057738287183

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