Racismo estrutural e saúde na atualidade

 

 

Saúde, branquitude e racismo estrutural em tempos pandêmicos 

Lia Vainer Schucman entrevista Mônica Gonçalves Mendes 

Mônica, você tem estudado muito saúde em sua perspectiva social. Nos fale a respeito da relação entre as desigualdades raciais e a saúde: como uma afeta a outra?

Bom, para entender este processo, é preciso entender o que é a saúde. Para isso, compartilho aqui meu entendimento sobre os processos que estão envolvidos no que habitualmente chamamos de saúde e sobre como a saúde acontece (ou deixa de acontecer) para as pessoas e grupos sociais.

Aproximadamente duas décadas atrás, surgiu um bordão que dizia que cada um é o que come. É verdade, somos mesmo o que comemos; mas somos também o lugar onde nascemos, as condições desse lugar (saneamento, acesso à água potável, etc). Da mesma forma, somos o tempo que demoramos para chegar ao trabalho e quantas horas podemos dormir. Nós somos também as ofertas que nosso país, estado ou cidade nos oferece, desde as tecnologias de saúde às de lazer. Somos ainda a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho aos 8, 18 ou 28 anos de idade, de acordo com o horizonte da nossa família e o momento histórico em que vivemos.

A saúde trata exatamente disto: como os processos sociais ficam impregnados nos nossos corpos, no corpo das pessoas, conformando esses corpos. Tem um exemplo bacana que ouvi certa vez numa aula de antropologia: numa determinada ocasião em que estava presente a rainha da Inglaterra, ocorreu um disparo. Enquanto todos da guarda real se abaixaram rapidamente, respondendo a um instinto que entendemos como algo natural, biológico e geneticamente programado em todo o grupo humano, a rainha se manteve de pé. Como alguns devem saber, no sistema monárquico, um rei ou uma rainha deve estar sempre à frente e acima de todos; nunca atrás, nunca abaixo. E é esse lugar social — com suas exigências, normas e padrões sobre como comportar-se e existir — que gera uma determinada configuração de corpo (no exemplo dado acima, a resposta corporal que mantém a rainha de pé, mesmo diante de um disparo). Neste ponto, caberia perguntar: e não teria ela instintos? O referido exemplo mostra como o lugar social ocupado e as normas que esse lugar nos ensina conformam nosso corpo e modela as suas respostas, até mesmo as instintivas. O corpo da rainha está configurado de modo a nunca abaixar. A partir desse exemplo, podemos questionar: o que se inscreve no corpo de uma mulher que dançou balé dos 3 aos 40 anos de idade, ou de um homem que demora duas horas para chegar a uma fábrica onde exerce o ofício de operário por 12 horas seguidas e em pé? São exemplos de como os lugares sociais moldam, conformam ou configuram respostas biológicas.

Muitas vezes, quando estou formulando este raciocínio, as pessoas perguntam: mas, Mônica, então o biológico não existe, você não acredita no biológico? Eu acredito sim, pois ele está aí. Na medida em que temos um corpo, o aspecto biológico existe. Quando a bailarina tem problemas ósseos ou o operário tem um quadro agudo de estresse, é no corpo, no biológico, que isso se manifesta. A questão é a subordinação e determinação a que o biológico está submetido na sua relação com o social.

A situação da saúde das populações negras no Brasil não deixa nenhuma dúvida quanto à veracidade deste processo: nós vivemos menos e morremos mais cedo por causas evitáveis. Morremos pela violência policial, pela negligência nos serviços de saúde. A população negra está em desvantagem mesmo quando pensamos em eventos relacionados à saúde que não envolvem adoecimento, como o parto: entre as mulheres negras é que estão os maiores índices de mortalidade materna. Também a mortalidade infantil é maior entre os bebês nascidos de mulheres negras.

Esses dados não estão relacionados a uma conformação biológica, uterina, a uma condição orgânica diferente entre as mulheres negras e brancas; isso se refere ao fato de elas terem menos condições de acessarem os serviços de saúde e, quando isso acontece, de sofrerem com o racismo. Elas recebem menos consultas ao longo do pré-natal, recebem alta mais cedo diante de agravos. O entendimento de que a razão pela qual as medicações contra hipertensão são menos eficazes para as pessoas negras não se trata de uma condição biológica particular — como a conformação das artérias, a compleição muscular, ou algo próprio da estrutura física — ainda é uma “descoberta” entre os médicos e muitos estudiosos do campo da saúde. Somente há pouco tempo passou-se a entender que isso acontece porque esta população tem menos instrução; trabalha em condições mais precárias, o que dificulta aplicar maior atenção aos cuidados necessários e regularidade no tratamento; e recebe menos orientações nos atendimentos em saúde, fatores que dificultam o uso adequado da medicação, com consequências biológicas adaptativas que fazem com que a resposta seja menos eficaz para elas em comparação às pessoas brancas.

É duramente emblemático que o único grupo de doenças prevalentes entre brancos, em comparação aos negros, seja o grupo das demências. É uma condição de saúde a que só pode chegar quem envelhece, uma possibilidade muito rara entre os negros, diante das condições em que vivemos: estudamos menos, ocupamos os piores postos no mercado de trabalho, estamos em maior porcentagem no trabalho informal, não ocupamos os cargos de direção, gerência e decisão nas empresas ou na cena política. As casas chefiadas por famílias — e mulheres — negras são as que têm menos acesso a saneamento e água encanada. É a população negra que está concentrada nos bairros mais afastados das médias e grandes cidades, onde não há aparatos de lazer, cultura, nem serviços essenciais muitas vezes; onde também estão os pântanos alimentares, ou seja, os lugares onde comida de verdade e alimentos não industrializados, que favorecem uma melhor saúde, não chegam.

Os negros vivem materialmente em outro país, e isso se revela nas pesquisas que demonstram que o conjunto e a articulação dessas condições precárias nos colocariam num IDH inferior em sessenta posições ao ocupado pela população branca. Fica evidente assim como nada que vivemos ou fazemos está fora do conjunto das relações sociais? E que são essas coisas que fazemos e vivemos que determinam nossa saúde? Nossa saúde não é outra coisa senão a corporificação dessas vivências, o acúmulo das experiências vividas, o que acontece sempre dentro de uma condição que é social e também socialmente determinada. Saúde não é outra coisa senão a manifestação ou o resultado do processo social de incorporação, de inscrição dos sistemas sociais em nossos corpos. 

Mônica, o que a pandemia causada pelo novo coronavírus nos revela sobre o processo que você acabou de nos descrever?

A pandemia evidencia, com muita perspicácia e precisão, o fato de a saúde ser a corporificação do conjunto de processos sociais em que os grupos e os indivíduos estão imersos, isto é, as condições de vida a que as pessoas estão submetidas. A pandemia nos tem mostrado a radicalidade dessa dinâmica, na medida em que tanto o contágio como a possibilidade de recuperação pouco se liga a fatores biológicos; são aspectos essencialmente relacionados ao bairro onde se mora, ao número de pessoas com quem se divide a casa, ao tipo de trabalho que se exerce ou ao fato de ter ou não acesso à assistência médica. Veja, o que determina que pessoas negras morram mais não é possuir uma genética diferenciada ou qualquer outro aspecto biológico; antes se trata de pessoas com trabalhos precarizados, com menos direitos assegurados, se trata de um contingente que vive majoritariamente do trabalho informal e, por isso, não tem a possibilidade de se isolar e de se proteger como o momento impõe.

Há aqueles que dizem que essa situação mundial de calamidade em que a pandemia nos colocou mostra como somos todos humanos, iguais, todos vulneráveis à mesma medida, todos impotentes frente à situação de interdependência e imprevisibilidade que a transmissibilidade do vírus nos impõe. Isto, que não deixa de ser verdade, tem na mesma medida a sua outra face, o seu inverso: a doença mostra como somos diferentes, como indubitavelmente estamos em contextos diferentes, condições de vida, cuidado e saúde diferentes, às vezes opostos mesmo. Nunca ficou tão evidente que ter ou não melhores condições de emprego, direitos trabalhistas assegurados, saúde pública universal e efetivamente de qualidade, tudo isso é uma questão de vida ou morte, ou seja, pode determinar a vida e o destino das pessoas de maneira cabal e atroz. Também nunca ficou manifesto quem tem isso e quem não, e qual a cor desse contingente. A pandemia, nesse sentido, não mudou a ordem das coisas; é apenas um catalisador que tem tornado impossível adiar o debate sobre a universalização dos direitos, a extensão da cidadania para todos e sobre como conseguir isso de maneira substancial, material, especialmente aos que estão menos assegurados. 

Sua dissertação de mestrado tratou da relação entre branquitude e saúde. Fale um pouco como a branquitude se inscreve no processo de estruturação das desigualdades na saúde.

Se falamos como o racismo produz diferenças nas condições de vida entre pessoas negras e brancas, se falamos como as pessoas negras são prejudicadas na totalidade das suas vidas — portanto, também na sua saúde — por sofrerem processos de discriminação, então estamos falando de um grupo favorecido, sim? O processo de favorecimento dos brancos ocorre, no campo da saúde, fundamentalmente de três formas.

Uma primeira forma é a social, mais ampla, que envolve o conjunto de processos de vida, de maneiras como a sociedade, o trabalho, a vida estão organizados e como isso tudo favorece a saúde das pessoas brancas. Se elas vivem melhor, possuem melhores condições de saúde. Neste aspecto, que é mais estrutural, tudo o que foi mencionado em relação ao negro pode ser pensado para os brancos, mas de forma inversa: falamos de uma estrutura de vantagens, que é o mesmo processo de corporificação que opera não pela precariedade ou pela falta, mas antes pelo privilégio. A boa saúde das pessoas brancas, os anos que vivem a mais e em melhores condições, a menor taxa de doenças, a menor taxa de mortalidade frente aos mesmos diagnósticos, os melhores índices de saúde, todos esses indicadores dizem respeito aos privilégios sociais que lhes são garantidos, assegurados, a partir da espoliação que o racismo impõe aos negros.

A segunda forma pela qual a branquitude se inscreve no processo de estruturação das desigualdades em saúde se dá através do desenho institucional que os serviços e organizações dessa área ganham. Em outras palavras, através da forma como o conjunto de serviços está institucionalmente organizado, pelas normas, regras e códigos que regem seu funcionamento. Vamos pensar num exemplo prático: a assistência à saúde dada pelo SUS, nosso sistema público de saúde, é ofertada a partir de serviços e aparelhos que obedecem a uma lógica territorial. Ou seja, a implementação e distribuição geográfica dos dispositivos deve acontecer de modo a atender os princípios do SUS: garantir o direito de acesso à saúde a todos com equidade, ou seja, a partir das particularidades ou das necessidades de cada pessoa, das demandas de cada grupo populacional. O SUS deve fazer isso considerando o ser humano em sua totalidade, abrangendo todos os processos de vida, considerando desde os problemas e agravos em saúde mais simples aos mais complexos.

Porém, as Unidades Básicas de Saúde — que ficam nos bairros mais periféricos e devem ser a primeira porta de acesso a todo e qualquer cidadão, bem como devem dar cobertura em saúde a todo o território nacional satisfatoriamente — funcionam em horário comercial, um entrave ao seu proveito por parte da classe trabalhadora. Os grandes hospitais, por sua vez, estão sempre concentrados nas regiões centrais das grandes cidades. Isso dificulta que a população que mora mais longe, mais pobre — e majoritariamente negra — , chegue até lá. Ou seja, esse tipo de desenho organizacional, que é uma escolha política, cria entraves para que a população mais necessitada destes serviços usufrua deles. Isso atrapalha, inclusive, as possibilidades de fazer valer as diretrizes que o próprio SUS estabelece para si. Eu fico pensando como pode ter passado desapercebido, durante a pandemia do novo COVID-19, o fato de que todos os hospitais de campanha da cidade de São Paulo estivessem em regiões centrais, algumas delas riquíssimas, cuja população do entorno não utiliza os serviços públicos de saúde e até onde a população periférica tem dificuldade de chegar. É quase risível imaginar que um hospital de campanha tenha sido implantado em meio a mansões, casas com mais de 400 metros quadrados, com três salas, onde moram quatro pessoas, no mesmo momento em que a COVID-19 incide de maneira brutal sobre aqueles que vivem em sete pessoas amontoadas em cubículos, dividindo um único quarto — e por vezes a mesma cama. Seria risível, não fosse a forma institucionalizada de operar uma tragédia.

Vale ainda ressaltar que o debate aqui não trata de defender uma saúde pública exclusiva para os necessitados, para os pobres. O SUS deve ser universal — muito além do que hoje tem conseguido ser. A questão é que quem opera e executa a política na esfera da tomada de decisões considera absolutamente viável que um jovem preto e pobre se desloque de Parelheiros para se tratar no Hospital de Clínicas, mas certamente não pensa sob a mesma óptica o deslocamento de um idoso que vive em Pinheiros e vai até o Grajaú. Como quem organizou e organiza esses serviços desconsiderou essas questões? Como esses dados e evidências, a partir dos quais uma política de saúde deve ser programada, podem ser negligenciados na execução de um serviço de tamanha envergadura? É nesse sentido que vemos a branquitude em ação, isto é, no momento em que ela se coloca como um dispositivo de poder: na produção de uma política sob o prisma dissimulado de universalidade, que opera um corte racial de exclusão invisível nas instituições. Invisível na medida em que não há uma obstrução direta ao direito dessas pessoas; afinal, ninguém diz que negros não podem se tratar. No entanto, a inviabilidade se torna bastante concreta quando refletida nas efetivas possibilidades de acesso e nos destinos em saúde dessas gentes.

Há ainda uma terceira inscrição da branquitude nos serviços de saúde, geradora e mantenedora das desigualdades que observamos entre negros e brancos. Trata-se da discriminação positiva operada pelos executores de saúde que estão na ponta dos serviços, elegendo pessoas brancas para passarem por tratamentos em detrimento de pessoas pretas. Um dado interessante mostra exatamente isso aqui no Brasil: ainda que a população com maior incidência de doenças cardíacas seja a negra, o grupo mais contemplado por transplante coronário é de homens brancos. Algo ocorre neste meio de caminho que faz com que a população que mais adoece não seja a mais contemplada pela cura. Por que esta gente não é eleita para ser transplantada?

Na minha pesquisa de mestrado, apareceu um relato que é alegórico de como a branquitude opera nas instituições por meio da discriminação positiva: uma médica, que compôs a amostra dos meus entrevistados, partilhou a história de um homem branco em situação de rua que, por cinco meses, esteve em recuperação de uma cirurgia de hérnia, cuja fila de espera no SUS tem média de dois anos. É ela mesma que assevera que a população de rua é oitenta por cento negra em São Paulo. Vale dizer que este relato veio diante da seguinte pergunta: “Você acredita que a raça do paciente influenciou a conduta?”. Curiosamente, esta foi a única ocasião em que essa mesma pergunta foi respondida afirmativamente, considerando todos os entrevistados — incluindo a médica citada acima, que negou que raça teria influenciado na conduta adotada para as pessoas negras. No exemplo descrito, porém, além de responder afirmativamente — sim, a raça do paciente influenciou a conduta — , a entrevistada ainda conta que a equipe ficou muito indignada de ver uma pessoa branca naquela circunstância, e que o sujeito ganhou a simpatia de todos por ter as seguintes características: ser branco e estar em situação de rua. Diante desse quadro, foram feitas reuniões com a gestão, discussões de caso, articulações com outros serviços, culminando na cirurgia feita pelo médico responsável fora da agenda.

Eu entendo esse exemplo como um símbolo máximo de como o racismo e a discriminação racial se inscrevem negativamente nos serviços, dentro de lógica fundamentada na branquitude, na qual é possível excluir o negro, mesmo sem mencioná-lo, a partir da eleição de pessoas brancas para fruir de benefícios no cuidado que deveriam se estender igualitariamente a todos. O exemplo denuncia, ainda, um cenário bastante perverso e indigno a que os negros estão submetidos na área da saúde: quando não adoecem pelos fatores estruturais, pela condição de vida sistematicamente danosa; quando são capazes de superar os entraves colocados pelo racismo institucional e acessar os serviços, ainda assim encontrarão a exclusão.

O contraponto a esse caso está na história de um jovem negro que chega aos dezoito anos pedindo ajuda a uma UBS por sentir-se triste, estar com dificuldades pra dormir. Ele contou para enfermeira que o acolheu que usou drogas em uma única ocasião e entendia que isso se devia à tristeza que sentia. Esta enfermeira propôs reuniões de equipe, conversas com outros serviços, diálogos com outros profissionais. No caso do jovem, porém, a psicóloga da unidade disse não poder atendê-lo, pois, segundo ela, o paciente era muito “sedutor”; a psiquiatra também se recusou, pois “não atende drogado”. Encaminhado ao serviço de saúde mental, que é referência para casos de adição, ele é novamente recusado, pois a equipe entende que ele está deprimido. No serviço de saúde mental que é referência para transtornos mentais em geral, há recusa de atendimento com a alegação de que se tratava de um caso de drogadição. Cinco anos depois desta primeira consulta, aos 23 anos de idade, o jovem se suicida. Este é um suicídio “matado”, e o desdobramento deste caso, tão excepcional quanto o do homem branco, ensina que se o racismo não adoeceu o paciente pelo caminho, não o excluiu na entrada, ele o matou na saída. É importante enfatizar: as desigualdades raciais são criadas, produzidas, reiteradas, alimentadas; elas não acontecem por si só. Tais casos expõem como a discriminação, que acontece hoje, agora, neste tempo presente, nos serviços de saúde, é das principais responsáveis pela produção da desigualdade abissal nas condições de saúde entre negros e brancos. 

Como nós, enquanto sociedade, e, principalmente, como os gestores de saúde, podemos agir sobre esta estrutura?

Parto do que está proposto na pergunta: é preciso agir, fundamentalmente, sobre a estrutura. Fazer saúde é criar políticas de emprego, garantir direitos trabalhistas; é garantir e fiscalizar a implementação das políticas de cotas nas universidades, nos cargos públicos, nas empresas privadas e nos parlamentos; é investir em saneamento e na educação infantil e primária; é assegurar o direito à alimentação; é intervir sobre a questão do espaço urbano e da moraria. É preciso criar políticas a partir de um conjunto de ações programáticas que envolvam diferentes setores e que incidam positivamente sobre as condições de vida das pessoas negras marginalizadas: o direito de quem mais precisa deve estar ainda mais assegurado. Assim, me parece um caminho possível que os gestores invistam massivamente nas políticas de saúde de caráter intersetorial que englobem a área da educação, do trabalho e do desenvolvimento urbano. Pensando na própria saúde, é necessário e urgente que os serviços se organizem institucionalmente a partir das demandas das populações mais vulnerabilizadas. É fundamental que elas sejam o centro orçamentário, geográfico e programático a partir do qual deve acontecer a alocação de verbas, dos recursos materiais e humanos, e das melhores e mais desenvolvidas tecnologias em saúde. Essas demandas devem orientar a estruturação da rotina dos serviços e os fluxos institucionais.

Embora a pergunta se dirija principalmente aos gestores, há uma defesa da saúde coletiva e um chamado para que todo mundo participe da gestão. Nenhum direito jamais foi adquirido sem ser reclamado, reivindicado e disputado. O próprio SUS não foi criado sem luta. E nele existem os conselhos de saúde, que são espaços onde decisões importantes são pensadas e pactuadas, e que se pretendem horizontais e de prática democrática, dos quais qualquer cidadão pode participar. Mas isso não pode acontecer sem que cada pessoa, como sujeito histórico, se aproprie disso. É preciso ir às ruas, reivindicar direitos, fiscalizar a consecução deles. E estar ao lado dos que na política defendem a reforma agrária, a taxação de grandes fortunas, a seguridade social, a defesa, a proteção e a preservação das terras e territórios indígenas e quilombolas, assim como daqueles que lá vivem; enfim, ao lado dos que defendem os direitos trabalhistas e a universalização irrestrita do SUS. Esta, que é a tarefa de defesa da vida, não deve ser pleiteada apenas pelos gestores; ela deve estar no horizonte de toda e qualquer pessoa humana que acredita radicalmente na igualdade, que aposta em outro marco civilizatório, sob o qual toda vida humana é igual e digna, merecendo respeito e proteção. Esta é também a tarefa que cabe a todos que entendem que o mundo pode ser mudado, mas que isso só possível a partir da ação humana. Só ela — a ação humana — pode ser capaz de subverter um mundo ordenado pela desigualdade, opressão, discriminação, miséria de tantos para inventar um outro mundo, onde as possibilidades e as formas de existir e viver com saúde não sejam expressão de privilégio e vantagens, mas antes um destino de todos. 

Mônica Gonçalves Mendes é doutoranda na Faculdade de Saúde Pública da USP, pesquisando os engendramentos entre as formações raciais brasileiras e o campo da saúde pública. Possui graduação em psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008). Em 2017, concluiu mestrado em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP, tendo desenvolvido a pesquisa “Raça e Saúde: Concepções, Antíteses e Antinomia na Atenção Básica”. 

Lia Vainer Schucman é doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo com estágio de doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC. Autora dos livros Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo (Veneta 2020) e Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor (EDUFBA, 2018).  

Fonte: https://casadopovo.medium.com/sa%C3%BAde-branquitude-e-racismo-estrutural-em-tempos-pand%C3%AAmicos-3d01aa135cf4

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