A familia e a transmissão inter geracional da cultura

Aline Vilhena Lisboa; Terezinha Féres-Carneiro e Bernardo Jablonski.

Compreendemos a família como uma instituição histórico-social que, de acordo com Ruiz Correa (2000), constitui-se num grupo com características singulares e plurais, reunindo elementos de continuidade e contigüidade que incluem laços de aliança, filiação e fraternidade. Na interação desses vínculos encontramos uma importante herança intergeracional, a qual se reflete na relação familiar e afeta as alianças, os pactos e a convivência entre os membros. Na dimensão grupal familiar converge uma trama de complexas intermediações, engendradas pela herança intergeracional e conduzidas também pela cultura.

O conceito de transmissão intergeracional compreende a travessia de uma geração à seguinte de legados, rituais e tradições, a qual pode ser consciente ou inconsciente. Como uma modalidade da transmissão psíquica, a transmissão intergeracional compreende a possibilidade de uma geração transformar uma herança psíquica ou cultural, muitas vezes patológica (Magalhães & Féres-Carneiro, 2004; Ruiz Correa, 2000). A transmissão intergeracional permite continuar a identidade de uma família através de um legado estruturante de rituais e mitos, por exemplo. O processo de transmissão é importante para o universo grupal, porque é uma função de base na construção de uma identidade grupal (Kaës, Faimberg, Enriquez & Baranes, 2001), assim como permeia a construção da subjetividade dos membros do grupo. Num grupo familiar, o sentido da transmissão ganha estatuto de travessia de uma história particular, de acontecimentos circunscritos nessa história e dos laços estabelecidos de uma pessoa para outra ou de uma geração para outra (Ruiz Correa, 2000). Os discursos parental e social sustentariam a transmissão da cultura e permitiriam ou a elaboração de um legado ou a configuração do tecido vincular com patologias e perturbações, como as que percebemos em alguns sintomas familiares na atualidade.

Podemos compreender o processo de transmissão intergeracional articulando dois eixos de investigação: um pela via das estruturas psíquicas, ou seja, pelo dinamismo psíquico, e o outro pela cultura. Privilegiamos, neste trabalho, a transmissão da cultura por processos dos quais o sujeito pode ser consciente 1 Todos os nomes são fictícios Família e transmissão da cultura 53 Psicologia em Estudo, Maringá, v. 12, n. 1, p. 51-59, jan./abr. 2007 ou inconsciente e que asseguram a perpetuação de um legado recente e/ou ancestral através das práticas culturais. Alguns autores, como Eiguer (1998), Ruiz Correa (2000) e Kaës e cols. (2001), postulam que a transmissão da cultura se dá, sobretudo, por processos inconscientes, sem que o sujeito perceba os conteúdos herdados culturalmente. Outros autores ainda, como Benghozi (2000), Magalhães e Féres-Carneiro (2004, 2005), apesar de enfatizarem os processos inconscientes na transmissão, mencionam que esta pode se dar também por meio de processos conscientes, na medida em que alguns dos conteúdos herdados da cultura e da família são percebidos e até explicitados como tais pelos sujeitos.

É de geração em geração que reconhecemos as tradições familiares ancoradas, às vezes, nos mais rígidos e inflexíveis hábitos e atitudes do cotidiano, garantindo a sobrevivência do grupo em meio às transformações sociais e econômicas da sociedade. Contudo, nem sempre esta tradição é garantida pelos membros da família, perpetuando as práticas herdadas pelos parentes e ancestrais. Em gerações posteriores ou no mais remoto ancestral, observamos um membro disposto a transformar o legado de sua família, sendo percebido como uma ameaça pelos outros membros. Muitas vezes, esta tentativa de transformação pelo herdeiro expõe de tal maneira o “sujeito transformador” que a sua integridade física e psíquica podem ser colocadas à prova. Por outro lado, há casos, segundo Magalhães e Féres-Carneiro (2005), em que as pesquisas no campo de família apontam a transmissão intergeracional referindo-se a situações de normalidade e possuindo uma função universalmente organizadora, de caráter estruturante, uma vez que os rituais, as crenças, os valores atravessados pelas gerações repetem e, algumas vezes, renovam o novo laço conjugal a ser construído nas gerações posteriores. Isto quer dizer que a transmissão intergeracional de um legado, de uma cultura, pode ser, ao mesmo tempo, estruturante e transformardora num grupo familiar, sem que atinja a qualidade das relações entre os membros da família.

A formação do grupo familiar parte do encontro de um casal e de suas heranças ancestrais marcados por organizadores específicos (Anzieu, 1993), que podem ser psíquicos e sociais, conscientes e inconscientes, e intermediados pela cultura. Outra questão importante a ser considerada diz respeito ao lugar do sujeito na família. O sujeito precede sua entrada no grupo familiar na medida em que está presente no imaginário dos pais mesmo antes de seu nascimento. Assim, a construção de sua subjetividade advém da dimensão e da convergência de uma trama complexa de intermediações culturais e intergeracionais desta grupalidade. Magalhães e Féres-Carneiro (2004) postulam que o processo de subjetivação se dá a partir de um investimento narcísico dos genitores e de uma trama identificatória com estes e com outros membros da família, fruto de uma herança intergeracional transmutada nas múltiplas interpretações subjetivas da trama familiar, que são transmitidas de geração a geração. Consideramos que a identidade de um grupo familiar é composta, em parte, pelas subjetividades de seus membros e é sustentada pelos intercâmbios necessários nas relações entre o indivíduo – no sentido biológico – o psíquico e o social.

A concepção de cultura suscita algumas interpretações diferentes diante de alguns postulados teóricos. Desse modo, a postulação de Geertz concebe a cultura como “um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (Geertz, 1989, p. 103). Este padrão de significados é passado de geração a geração (intergeracional) e compõe parte das relações intersubjetivas do grupo familiar. A cultura se expressa nestas relações intersubjetivas por permitir compreender, no plano histórico da herança, as concepções ou ideais de um grupo para que haja harmonia e combinação de elementos determinantes do repertório existencial de uma família. A cultura, ainda, implica um conjunto de símbolos, possuindo relações de sentido (crenças, valores, mitos, rituais), promovendo as diferenças culturais, a fim de que possam ser definidas regras estruturantes de um determinado universo de significações (Anzieu, 1993; Kaës, 1997). Assim sendo, uma família é marcada pela sua história cultural singular e composta de sujeitos com histórias singulares em relação a outros grupos; portanto, a cultura compreende o que é da ordem do singular de um grupo e do sujeito e é, ao mesmo tempo, algo externo ao sujeito e ao grupo, a partir de sua relação com os outros (Ruiz Correa, 2000).

Cada família tem uma vida cotidiana com um estilo de “estar junto”, apresentando diversas maneiras de encontros, sejam eles por gestos de afastamento ou de aproximação, envolvendo toques corporais, que por sua vez tornam-se mais significativos que as palavras. É nesse processo vital que prevalece um meio de expressão particular da cultura familiar, mesmo estando inserida num contexto sociocultural mais amplo. Os rituais familiares são processos vitais, garantindo formas de expressão e de comunicação dos afetos, das lembranças e da história propriamente dita através das gerações. Ainda, estes processos são constituídos por práticas sociais carregadas de simbolismo, sendo suas atribuições asseguradas pela identidade familiar configurada, também, a partir de outras referências grupais. Além disso, os rituais possuem funções, apontando uma defesa contra a angústia diante das mudanças e, em certos casos, estabelecendo um intercâmbio com o divino para amenizar esta angústia e reafirmar uma aliança social, valendo-se da prática do sentimento de pertença, em que o “nós” possa ser praticado (Ruiz Correa, 2000).

A partir de uma análise intrasubjetiva, podemos compreender o símbolo e o simbolismo como uma formação e um processo, respectivamente, substitutivos do modo de representação indireta e figurada de uma idéia, de um conflito e de um desejo inconsciente (Laplanche & Pontalis, 2001), o que para Geertz (1989) compreenderia a “essência do pensamento humano”. A compreensão dos símbolos utilizados por um grupo familiar pode ser interpretada como a evocação de algo impossível de ser percebido, tornando concreto aquilo que não pode ser elaborado pela família, fazendo-se representar na simbolização dos rituais do grupo. Daí, postularmos que a cultura de uma família pode ser uma tentativa de representar ou responder às demandas do mundo contemporâneo. A cultura ainda compreende uma maneira de estabelecer uma fronteira entre o mundo interno e o externo do grupo, principalmente quando temas como sexo, casamento e religião aparecem. A cultura de uma família pode construir novos significados diante das vicissitudes da sociedade ou compreender uma maneira de conservação dos pontos de vista, a fim de que a preservação e a sustentação da tradição do grupo sejam garantidas.

Fonte: http://www.scielo.br/pdf/pe/v12n1/v12n1a06.pdf

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