Quantos eus?

 

 

A cilada capitalista do eu único

Lola López Mondéjar, entrevistada por Esther Peñas | Tradução: Simone Paz

Ao propor que nossos desejos e vazios sejam saciados com objetos, sistema não alimenta apenas o consumismo, alerta psicanalista espanhola. Ele incita as ilusões narcísicas de identidade e busca da felicidade — das quais deveríamos fugir…

Das muitas questões que sustentam uma época, a da identidade pode ser uma das que mais nos permeiam, neste século. A miragem da invulnerabilidade, o pânico em reconhecermos a nossa frágil essência, a possibilidade de nos reivindicarmos a partir do erro, o medo de nos conhecermos, esse mesmo medo que qualquer tipo de compromisso desperta — mas sobretudo o afetivo e a questão da liberdade como condição possível… Conversamos sobre essas e outras questões com Lola López Mondéjar , psicanalista e escritora, além de destacada conversadora, com nuances e estímulos tão sensíveis quanto intelectuais.

Seu próximo ensaio, “Invulneráveis e invertebrados”, aborda a questão da subjetividade, um conceito que foi aprofundado desde Montaigne. Porém, de forma sutil, essa palavra vem sendo substituída por “identidade”, mas não é, de maneira alguma, a mesma coisa. Qual a diferença entre uma e outra?

A identidade é uma ficção de unidade necessária para a nossa sobrevivência, mas que deixa de lado a multiplicidade do nosso eu. Nosso cérebro procura um sentido e cobre as lacunas entre os fragmentos que nos compõem, com histórias que nos dão uma certa ilusão de sentido: uma identidade. A identidade é mimética, baseia-se nas identificações, na marca que os outros significantes nos deixam e no desejo triangular, como René Girard chamou a estrutura mimética do desejo: segundo ele, Emma Bovary quer amar como nos romances românticos que ela leu; Dom Quixote quer ser um cavaleiro andante movido pelos livros da cavalaria e pelo heroísmo de Amadís de Gaula.

Esse desejo é mimético porque existe um mediador entre nós e nossos objetos de desejo; queremos o mesmo que nossos modelos. Trata-se do que Lacan mais tarde expressou como “o desejo humano é o desejo do Outro”. Queremos o que eles nos propõem que queiramos. A publicidade e o capitalismo baseiam-se nessa natureza mimética do desejo, que propõe interminavelmente objetos, usando todos os tipos de modelos como mediadores. Subjetividade seria o oposto de identidade. Onde há identidade, a ilusão da unidade, não há exploração da multiplicidade, não há diálogo com as identificações que nos constituem. A subjetividade implica a criação de um eu que questiona as identificações anteriores e constrói outras em um processo dinâmico constante que só cessa com a morte. Digamos que quanto mais identidade, menos subjetividade.

Sei que você fala sobre a questão detalhadamente, no ensaio, mas o que que vincula o capitalismo pós-fordista com a obesidade mórbida?

Anselm Jappe, em seu excelente livro A sociedade autófaga, nos fala sobre o mito de Erisicton, que por derrubar uma árvore sagrada dedicada a Deméter foi punido pela deusa, que lhe apresentou a fome enquanto dormia. Erisicton acordou com uma fome insaciável que o levou a perder todas as suas riquezas, vender sua filha e, finalmente, para descansar deste tormento hediondo, devorar-se em um último ato autofágico. O mito é uma bela metáfora para a ganância insaciável do capitalismo que destrói o planeta que o sustenta. A obesidade mórbida tem origens diferentes, algumas metabólicas, mas na maioria dos obesos, ela está ligada à oralidade, à rápida satisfação dos prazeres orais para aliviar a ansiedade relacionada à vida e suas vicissitudes.

Podemos, então, falar em obesidades. A obesidade de origem psicogênica é sintoma de uma dificuldade de separação-individuação dos pais, uma dificuldade de sexualização posterior, de enfrentar o conflito e de autodisciplina por meio de uma certa repressão do desejo oral, que é devolvido como forma primária de satisfação diante das frustrações com que o obeso não consegue e não sabe lidar. O obeso busca se sentir preenchido, uma realização e plenitude inatingível, e tenta evitar a carência substantiva em todos os seres humanos (ligada à nossa separação da natureza, nosso pertencimento à linguagem, nossa vulnerabilidade ontológica), com a comida. Ele confunde falta com vazio, como acontece com os viciados em drogas, e busca preencher esse vazio com comida. O capitalismo acentua essa crença de que a falta pode ser preenchida com objetos. Na verdade, é baseado nessa armadilha. Por outro lado, o alimento mais calórico, a comida porcaria, tem um componente viciante porque produz prazer imediato e está prontamente disponível nas sociedades desenvolvidas, o que o torna um analgésico de fácil acesso.

É engraçado, me vem à mente aquilo que poderia ser postulado como a antítese do mito de Erisicton: o símbolo do pelicano, usado para representar Cristo no passado, devido ao fato de ser o único animal capaz de se desfazer em pedaços para alimentar suas crias…

É uma bela alegoria que nos remete à necessidade de dar continuidade à espécie e a um ato de amor, muito diferente, de fato, daquilo que significaria Erisicton. A crise ambiental, forçando o paralelismo, nos empurraria a imitar o pelicano, a nos privarmos de formas de vida insustentáveis para salvar nossos filhos. Um sacrifício que não parecemos estar dispostos a aceitar

Voltando à obesidade mórbida como consequência do sistema capitalista, você usa um exemplo muito gráfico, o do guano…

Sim, a ilha de Nauru representa a desmedida causada pela riqueza. Há uma causa da obesidade que tem a ver com a biografia de cada um — como tudo na vida — e outra, com a cultura, que também impõe suas exigências, mas mesmo assim nem todo mundo fica obeso. Nauru era uma ilha com muitas reservas de guano, ou seja, cocô de gaivotas e outras aves marinhas, e o guano era um fertilizante de alto valor na década de 1970. Como resultado, Nauru alcançou a maior renda per capita do mundo. O que aconteceu? Que todos os seus habitantes ficaram obesos, abandonaram a comida tradicional e adotaram a comida ocidental como símbolo de riqueza. 97% de sua população tinha obesidade mórbida, mas quando o guano e os fosfatos acabaram, a ilha empobreceu e agora é um campo de internamento para refugiados da Austrália, que paga a Nauru para aceitar seus imigrantes e assim manter um nível de renda que lhes permite viver. Uma ilha-prisão que possui, aliás, um alto índice de suicídios entre os refugiados que abriga.

Mas hoje há os que defendem a obesidade como um traço de identidade…

Sim, é sobre isso que me debruço em meu livro, sobre o mecanismo de racionalização usado por alguns grupos de obesos (basicamente mulheres) para justificar sua obesidade. Numa louvável tentativa de empoderamento, defesa da diversidade corporal e oposição à norma estética, esses grupos negam o ideal estético de magreza e postulam a obesidade como outro ideal igualmente desejável. Também, negando os danos que o excesso de peso traz. Esta forma de converter a vulnerabilidade em onipotência, em invulnerabilidade, que está na origem de muitas obesidades, é nova e, a meu ver, um sinal do que chamei de a fantasia da invulnerabilidade, com a qual os indivíduos contemporâneos, que rejeitam a percepção de fraqueza de maneiras muito diferentes, se identificam hoje em dia.

Se o capitalismo ultraliberal nos transforma em obesos mórbidos, como consumidores materiais, como romper com essa ansiedade, como se saciar?

A promessa de felicidade, que a feminista Sara Ahmed explica como típica de nosso tempo, é uma mentira perfumada. O imperativo da alegria é uma armadilha que nos ajuda a fugir do conflito e do desconforto, sem tentar entender o que está acontecendo conosco. No longo prazo, a construção de individualidade mais bem-sucedida no capitalismo financeiro é a de um sujeito sem sujeito, um indivíduo que não tem a capacidade de refletir sobre si mesmo, não criou sua subjetividade, já que a externalização e o narcisismo imaginário, nos quais se sustenta, não permitem a introspecção e o pensamento no longo prazo. Isso nos leva a uma incapacidade de reflexão sobre nós mesmos, a uma fuga para a frente que muitas vezes beira a psicopatia, pois destrói o reconhecimento intersubjetivo necessário e usa os outros exclusivamente como função, em benefício próprio. Há uma cegueira coletiva, como a que Saramago relatou em seu Ensaio sobre a Cegueira, que nos impede de reconhecer os outros.

Ou seja, não há como ficar saciado.

Ficar saciado é impossível, devemos aceitar nossa insatisfação. A ansiedade é produzida, muitas vezes, justamente porque no neoliberalismo nos ensinam que podemos fugir do desconforto, e sentir-se mal é vivido como um fracasso, dado o imperativo de ser feliz que compartilhamos. O desconforto faz parte da experiência humana, mas tentamos evitar a dor de viver. No fetichismo identitário em que vivemos (Bauman já alertava sobre essa confusão entre consumir e construir identidade), a felicidade é um padrão e é difícil abandonar esse imaginário.

Penso na “jovem” da qual falava o coletivo Tiqqun, uma mulher que se passava por moderna, mas que era tão constrangida quanto as de antigamente, e cujos parâmetros de beleza ainda eram impostos pelos homens. Em que situação estamos agora, as mulheres conseguiram superar os ditames, as normas patriarcais?

No livro Il corpo delle donne, Lorella Zanardo escreve, de forma crítica, sobre a exposição dos corpos das mulheres na televisão italiana, e conclui que é necessária uma educação que nos ensine a analisar tudo o que o cinema e a publicidade naturalizam sobre o nosso corpo, um corpo que, por outro lado, aparece hoje como infinitamente maleável. A docilidade da mulher perante as normas estéticas continua a ser evidente, principalmente entre as mais jovens, que são as que mais precisam de uma identidade. “Uma mulher é assim assado”, nos dizem, e nós tentamos nos adaptar a isso. A feminilidade tem altas doses de teatralização estética (salto, maquiagem…) e as indústrias cosmética e da moda nadam nesse mar. Sapatos confortáveis foram uma revolução que mostra nossa mobilidade recém-adquirida. Há rebeliões tímidas, como ficar grisalha, abandonar a maquiagem, se distanciar da moda, que é uma das indústrias mais poluentes. A austeridade e a sustentabilidade que o planeta exige de nós fará com que abandonemos aos poucos as propostas estéticas patriarcais. Mas, para muitas mulheres jovens, a feminilidade é descrita pela publicidade e elas apenas têm que imitar esses gestos.

O pensamento patriarcal acredita que as feministas são rudes, desleixadas, pouco atraentes… e há muitas feministas que consideram esta condição incompatível com a coqueteria, por exemplo. Afinal, toda ideologia é dogmatismo?

Acho que o feminismo é muito plural, a maioria das feministas que conheço não liga para a questão de se usar maquiagem é feminista ou não. Existem outras questões muito mais importantes, como paridade na cultura, igualdade de remuneração, responsabilidades compartilhadas, violência contra a mulher, mutilação genital feminina, casamento infantil, insegurança no trabalho, feminização da pobreza, prostituição… A coqueteria faz parte da socialização de cada mulher, de sua biografia, e é respeitável como uma opção individual. Existem muitas identificações da feminilidade hegemônica patriarcal que são inofensivas, como o grau de cuidado pessoal. Mas politicamente, é preciso identificar essa submissão às normas estéticas, também as mais próximas da indústria de consumo, como forma de dominação e imposição ao corpo da mulher. A cirurgia plástica, a modelagem do corpo para a satisfação do outro, o imperativo da magreza podem ser uma tirania, por isso é tão importante opor identidade e subjetividade. Esta última permite integrar criativamente essa coqueteria com a luta pela igualdade, por exemplo.

O que seduz a mulher no poliamor?

A origem do poliamor, que não tem nada de novo, é multifatorial. Durante a revolução sexual dos anos 1960, o chamado amor livre, uma afetividade não monogâmica já era explorada nas comunas. E o resultado era doloroso para muitas mulheres. Tratava-se da universalização de um modelo sexual masculino, sem compromisso afetivo; um acesso à promiscuidade que beneficia os homens e deixa de lado as necessidades afetivas das mulheres, educadas em uma identidade relacional de cuidado com o outro. Uma identidade onde o reconhecimento intersubjetivo no amor é uma prioridade. As mulheres jovens assumiram essa proposta como religião e, sem pensar, nos lançamos na aventura da libertação sexual, que negligenciou muito o nosso desejo — mais demorado, talvez mais complexo. E digo talvez não porque considere que exista uma essência do desejo masculino e outra do feminino, mas referindo-me às diferentes formas de educação que envolvem experiências diferentes do corpo e do desejo uma na outra. Acho que uma educação mais igualitária ajudaria em nossos desejos de ser semelhantes.

Daqueles tempos para a atualidade, o poliamor surge como uma forma de relacionamento não-patriarcal e não-monogâmico. Não é muito difundido, mas acho que quem o pratica, grupos mais conscientes e formados, podem fazê-lo como uma defesa contra a crescente incerteza das relações afetivo-sexuais contemporâneas. Chamei à forma de relacionamento proposta por aplicativos de namoro de Modelo Tinder. O poliamor pode fornecer proteção contra o medo de abandono que a falta de compromisso nos relacionamentos atuais traz consigo. Ao diversificar o objeto de amor em vários parceiros, há sempre uma alça para segurar em caso de perda. Recordemos que o medo da perda está na origem de uma das angústias básicas do ser humano e que o desamparo é muito profundo para os jovens nestes tempos de incerteza. Por outro lado, acredito que a monogamia é uma imposição cultural, assim como a heterossexualidade; poderíamos ser educados para ter outros tipos de relacionamento. Portanto, se os participantes de relacionamentos poliamorosos conseguem lidar com o ciúme e as diferenças, estabelecer relacionamentos honestos com os outros sem prejudicá-los excessivamente, acho que é uma opção muito boa.

Não acho que ele sirva ao modelo neoliberal mais do que o padrão moral clássico, da infidelidade que se pratica entre casais monogâmicos convencionais. No entanto, o que me impressiona nos ativistas poliamoros que li, especialmente na literatura americana, é que eles colocam a ênfase na sexualidade como eixo de sua identidade. Eles colocam a relação afetiva de volta no centro de suas vidas e, em um mundo onde o trabalho ocupa cada vez mais espaço, isso é muito interessante. Tem algo transgressor, anticapitalista, que deve ser observado.

O poliamor é possível ou é uma maneira de fugir do compromisso?

Para alguns, o poliamor também é uma fuga do compromisso. Uma forma onipotente de não poder abrir mão de outros encontros possíveis, que fica de fora quando nos comprometemos com uma pessoa. A renúncia custa muito nestes tempos de promessas de felicidade e de ausência de limites, onde a oferta de relacionamentos é infinita e sempre parece haver alguém por aí que pode ser melhor do que os próximos. Mas para outras pessoas, a solução poliamorosa é, justamente, uma resposta à falta de compromisso do outro, para não sofrer o desamparo que essa incerteza produz, o medo que a falta de certezas gera no casal, e eles multiplicam suas redes para não cair no abandono. O que mais me preocupa nas teorias poliamorosas é uma certa onipotência que tenho observado quando se trata de confiar no fato de que os participantes do experimento são capazes de superar as sobredeterminações inconscientes produzidas por sua socialização em um modelo patriarcal e monogâmico de educação sentimental (embora a monogamia esconda muita infidelidade poliamorosa, secretamente). Ou seja, apelam à vontade para superar o ciúme, quando este transcende a vontade e se inscreve no inconsciente. Nós, jovens da transição, sabíamos disso muito bem. É nessa onipotência de pensamento, comum também a certas propostas de transição de gênero, que vejo seu calcanhar de Aquiles.

O que o poliamor tem a ver com essa demanda capitalista de não descansar, de fazer coisas, de agir?

Não sei. Em um dos capítulos do ensaio que estou terminando, que chamei de “Dançai, dançai, malditos”, analisei uma das características do tipo de produção da individualidade na modernidade tardia, que consiste em agir sem descanso. Este mecanismo está muito presente em séries como Girls ou Euphoria, e muito notadamente em Transparent, bem como na literatura atual. É um mecanismo de defesa que foge da reflexão, de modo que, diante de qualquer evento passível de produzir uma ferida narcísica (separação, luto, perdas…), tende-se a responder com um ato, uma fuga para frente que busca a recuperação, aquele narcisismo perdido com a recuperação da agência, que nos devolve a sensação de onipotência perdida. É algo como o ditado clássico: “só se cura um amor com outro amor”. Atuar era um mecanismo muito típico da masculinidade hegemônica. De fato, nas formas de adoecimento de homens e mulheres destaca-se como estes tendem a vivenciar a depressão com comportamentos (vícios, direção imprudente, irritabilidade…), enquanto as mulheres o fazem pela somatização e inibição do comportamento. Mas agora é uma defesa que as mulheres também adotaram. Porém, no poliamor há uma reivindicação da palavra, da conversa e da reflexão para falar do ciúme, para organizar a vida cotidiana incluindo três ou quatro pessoas, e que esse “mergulho” no afetivo não é capitalista, e sim, o contrário.

Reivindicar o que não é lucrativo é a maior oposição que se pode fazer ao sistema?

Evidentemente. Desacelerar, para se dedicar ao próximo, é uma forma de recuperar a humanidade perdida.

Sem nenhum puritanismo, o sexo perdeu seu valor?

Sabemos que os jovens de hoje dão menos importância ao sexo do que seus pais. A repressão sexual, como diria Foucault, paradoxalmente colocou a sexualidade no centro de nossas vidas, e quando essa repressão foi retirada, não houve, como Deleuze e Guattari previram, a vitalização e recuperação de um corpo libidinal, de uma máquina de desejo poderosa e transbordante, mas muito pelo contrário: tornou-se apatia, dificuldade de desejar o outro, indiferença. Este foi um dos efeitos mais interessantes que pude observar em minha vida. Entre a minha geração, onde a sexualidade era muito central na nossa subjetividade — e mais ainda na Espanha, devido ao franquismo e catolicismo repressivo, mas, também, no resto do mundo ocidental — e a geração dos meus filhos, há uma enorme diferença no que diz respeito ao valor da sexualidade. Entre os jovens que hoje se estabelecem como casal, os encontros sexuais são muito reduzidos. Valorizam mais o apego, a cumplicidade, o projeto comum. O autoerotismo está muito presente, tanto dentro como fora do casal, como se o encontro sexual com o outro fosse mais difícil. E é.

A que se deve a existência de tantas “identidades” sexuais? O sexo não acabou sendo apenas mais um produto nos corredores do grande mercado capitalista onde se escolhe o que é considerado ser o melhor para sua imagem?

Acho que sempre houve pessoas que não se encaixavam no modelo binário masculino/feminino. Esse modelo funciona como um leito de Procusto, que exclui ou mutila quem não cabe nele. Até a medicina contribuiu, negando o intersexo anatômico, a distinguir apenas dois sexos e, posteriormente, dois gêneros. É um modelo “biologicista” e essencialista que se opõe ao modelo construtivista em que agora estamos imersos. Com a liberdade sexual, com a liberalização dos costumes, a expressão da diversidade tornou-se maior. As teorias queer deram um aspecto natural a esse alcance da experiência trans e despatologizaram o que se chamou disforia de gênero, para que hoje um jovem que não tem certeza se se sente homem ou mulher, possa obter modelos de outros jovens nas redes sociais e se identificar com eles. O problema é que fugindo de identidades binárias caímos de pernas para o ar por outras identidades igualmente coercitivas, como apontado por Del LaGrace Volcano, ativista intersexual e fotógrafo, que acredita que há um elemento de moda na identidade transexual e que a transexualidade pode atrair as pessoas com problemas mentais ou emocionais. Por outro lado, Volcano aponta que o imperativo transgressivo de gênero recria novas hierarquias, dependendo se você é mais ou menos queer ou mais ou menos fluente, o que nos fala do retorno à identidade rígida, onde as identidades eram mais destinadas a serem transgredidas. Não esqueçamos que, afinal, a identidade se baseia em propostas de modelos sociais para responder à pergunta sobre o que sou. A subjetividade pergunta quem eu sou e deixa o campo mais aberto.

Como saber que o que você deseja é autêntico e não é mediado pela publicidade, o que seria pior?

Construir nossa subjetividade é isso mesmo, dialogar com aqueles impulsos para a mímica. A nossa cultura é daquelas que faz nos sentirmos muito singulares, apesar da nossa liberdade se limitar a escolher somente entre os produtos de consumo que o mercado oferece, que são todos iguais. É muito difícil sair desse impulso, dialogar com essas marcas, em seu duplo sentido: marcas-produtos e marcas-psíquicas, e enfrentá-las. Por outro lado, o autêntico remete a algo essencialista, é difícil para mim pensar que haja algo autêntico, não mediado pelo cultural, no ser humano.

Não há nada estritamente puro ou autêntico, o que não é sinônimo de mau…

Na verdade, temos que nos reconhecer como pequenos frankensteins, seres fragmentários feitos de identificações com os outros, que por sua vez são veículos da cultura, e tentar fazer sínteses sempre conjunturais. Qual é a autenticidade do ser humano? Acho que não existe, pois das sínteses pessoais poderíamos dizer que, por sua vez, seriam feitas com outras identificações ou talvez com sínteses desconhecidas. Acho que foi Spinoza quem disse que chamamos de liberdade o desconhecimento das causas que nos determinam. Achamos que somos livres, mas estamos sempre sobredeterminados. Saber disso, aceitar que não somos autênticos, já nos liberta de certa alienação e nos permite explorar e investigar a genealogia do nosso desejo. 

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-cilada-capitalista-do-eu/?fbclid=IwAR3ZoKtA5pR0zQE74XW5jVsY_bodAjAdIVNkF2DxzkmGfVzZzGCvmtvlvK8

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