O corpo humano e as tecnologias
Por Dora Kaufman Ao permitir o monitoramento próximo e contínuo, o IoB pode dar suporte à sistemas de saúde na detecção precoce e prevenção de doenças, ser eficaz na reabilitação de pacientes após cirurgia ou medicação, e contribuir no combate a doenças pandêmicas. Marcapasso cardíaco monitorado remotamente, pâncreas artificial que monitora a glicose no sangue e fornece insulina, implantes cerebrais para tratar os sintomas de Parkinson e Alzheimer, próteses com software conectado aos ossos, são exemplos de dispositivos ingeridos, implantados ou conectados ao corpo humano, transformando-o em uma plataforma tecnológica. A "Internet of Bodies" (IoB), extensão do domínio da Internet das Coisas (IoT), tem controle sobre funções vitais do corpo convertendo-o em fonte geradora de dados pessoais com impactos na privacidade. As “pílulas inteligentes” (smart pills) são cápsulas com sensores que percorrem o organismo em busca de sinais fora do padrão (anomalias), capazes de detectar desde doenças benignas até câncer. Criadas por Kourosh Kalantar-zadeh, engenheiro de nanotecnologia da Universidade RMIT, Austrália, as cápsulas medem pH, enzimas, temperatura, nível de açúcar e pressão arterial oferecendo uma imagem pluridimensional do corpo humano. Nos EUA, a FDA aprovou o dispositivo PillCam Colon, método de rastreamento alternativo à colonoscopia clássica invasiva; estudo dos pesquisadores israelenses Samuel Adler, Bikur Holim Hospital, e Yoav Metzger, Hebrew University, atesta sua eficácia. Decodificando o cérebro humano: assimetria informacional entre produtores de tecnologia e legisladores A Internet of Bodies contempla, igualmente, desde a "wearable technology” associada à fitness (smartwatches, fitness trackers) aos microchips para fins de identificação biométrica e/ou concessão de autorização. A fabricante Biohax já implantou mais de 4.000 microchips para substituir chaves, milhares de suecos estão implantando microchips em seus corpos substituindo cartões-chave, identidades e até passagens de trem (de 2015 à 2018, 3.000 suecos se submeteram ao procedimento). Outro exemplo são os adesivos eletrônicos para a pele (wearables médicos), amplamente adotados para monitoramento cardiovascular, controle de diabetes, detecção de temperatura, suor e monitoramento de biomarcadores. Ao permitir o monitoramento próximo e contínuo, o IoB pode dar suporte à sistemas de saúde na detecção precoce e prevenção de doenças, ser eficaz na reabilitação de pacientes após cirurgia ou medicação, e contribuir no combate a doenças pandêmicas (como a covid-19). Os dispositivos inteligentes promovem, dentre outros, o rastreamento remoto de pacientes, estilos de vida saudáveis, a medicina preventiva e de precisão, a segurança no local de trabalho. Trazem, contudo, riscos à segurança e à privacidade, suscitando novos desafios para a governança de dados (privacidade, autonomia individual, biohacking, riscos de discriminação/viés, além dos problemas de modelagem/desenvolvimento). Os alertas não são novos. Em 2018, por exemplo, Andrea M. Matwyshyn, professora de Direito e Ciência da Computação da Northeastern University, publicou um artigo no The Wall Street Journal reconhecendo os extraordinários benefícios desses dispositivos, mas, igualmente, alertando sobre os riscos associados tais como a segurança física, a autonomia e o bem-estar. Dentre as questões éticas, talvez o maior desafio a enfrentar seja a ameaça à privacidade. Como todas as tecnologias conectadas, os dispositivos da IoB geram grandes volumes de dados, particularmente dados sensíveis, categorizados pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) como aqueles que revelam atributos pessoais, incluindo informações genéticas, biométricas e de saúde. Essa coleta, armazenamento, uso e compartilhamento em larga escala de dados pessoais, em geral, não estão previstos nas regulamentações vigentes (pelo menos em sua ampla abrangência). O Fórum Econômico Mundial (WEF), em colaboração com autoridades de saúde pública, empresas líderes de tecnologia e outras partes interessadas, está empenhado em desenvolver e testar novas abordagens para o tratamento ético do compartilhamento de dados de saúde coletados por dispositivos portáteis. Em julho de 2020, o WEF publicou o relatório de autoria de Xiao Liu e Jeff Merritt, ambos pesquisadores vinculados ao WEF, “Shaping the Future of the Internet of Bodies: New challenges of technology governance”, versando sobre as implicações desses dispositivos para a privacidade e equidade, além do uso dos dados para fins de vigilância pública. "Estamos no início de um importante diálogo público que terá grandes implicações para a saúde pública, a segurança e a economia global e também pode, em última análise, desafiar a forma como pensamos sobre nossos corpos e o que significa ser humano", ponderam os autores. O relatório examina a governança de dados IoB nos EUA comparativamente a regulamentação da União Europeia, salientando a urgência de atualizar as abordagens de governança de dados e as leis de proteção de dados. As regulamentações americanas são setoriais, com leis específicas para distintos tipos de informação, usuário e contexto; na Europa, como pondera o WEF, o GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados) é um regulamento de dados não setorial e tecnologicamente neutro que fornece diretrizes para os procedimentos de coleta e processamento de dados pessoais. Para os autores, tanto nos EUA quanto na UE, existem lacunas entre as leis antidiscriminação e o novo risco de discriminação decorrente de inferências, perfis e agrupamentos baseados nos dados originados na IoB. Os benefícios das novas tecnologias digitais são incontestáveis; em troca deles, entregamos nossos dados. Desconhecemos, contudo, como, onde e para quê nossos dados são usados. Desconhecemos suas implicações, presente e futura. A aceleração de novas descobertas e novas aplicações aumenta a lacuna entre o conhecimento dos legisladores e dos desenvolvedores, quase que inviabilizando a atualização contínua dos arcabouços regulatórios. Desafio e impasse dos tempos atuais. *Dora Kaufman - doutora pela ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV e Pós-doutora pelo COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP. Professora do TIDD PUC - SP e Professora convidada da Fundação Dom Cabral. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?”. Fonte:https://www.google.com/amp/s/epocanegocios.globo.com/amp/colunas/IAgora/noticia/2021/03/internet-bodies-o-corpo-humano-como-plataforma-tecnologica.htmlInternet of Bodies: o corpo humano como plataforma tecnológica