A felicidade esvaziada

 

 

 

Por uma felicidade vadia

Associado ao êxito individual, o ser feliz tornou-se obrigação tormentosa. Pode ser, porém, o desfrute de uma vida sem medos; os convívios que permitem encarar o incerto e a tristeza; e uma ética que, prezando o cuidado, desafia os moralismos 

Por Antoni Aguiló, no Público | Tradução: Simone Paz 

Desde 2013, a ONU reconhece o dia 20 de março como o Dia Internacional da Felicidade. Hoje em dia, a felicidade parece um significante vazio, explorado em excesso, até a exaustão. Abraça tantos significados diferentes, que praticamente cabe tudo nela: desde o consumo de Viagra, até os livros de Paulo Coelho. 

Apesar da banalização do termo, ao longo das últimas décadas o neoliberalismo impôs a crença de que a felicidade era fruto do esforço e do talento individual, prêmio que ganhamos por sermos produtivos e competitivos. É o típico discurso da meritocracia liberal, onde cada um chega onde quer com base em seu próprio valor. Para isso, a meritocracia nos introduz a necessidade contínua do “sempre mais”: treinar mais, trabalhar mais, demonstrar mais, ter mais seguidores nas redes sociais, etc. A felicidade torna-se prisioneira entre as frias paredes do cálculo e da eficiência. 

É uma dinâmica aparentemente virtuosa, mas capaz de gerar muita frustração e angústia: do mesmo jeito que ficamos contentes com nossos sucessos, nos culpamos por nossos fracassos. A verdade é que o lembrete que o coronavírus trouxe sobre a crua imprevisibilidade da vida desmente o discurso do mérito e da recompensa, principalmente em países que acumulam desempregados — e onde os méritos que supostamente garantiam o sucesso (títulos, idiomas, etc) parecem inúteis. Mas também é desmentido pelo fato de que viver em sociedades sendo branco, homem e hétero e cissexual é um privilégio que oferece vantagens desde o início. 

Além disso, a crise do coronavírus escancarou a natureza frágil e  instável da felicidade humana, sujeita a três processos que já ocorriam, mas a pandemia se intensificou. O primeiro é a medicalização da felicidade. A nova normalidade trouxe consigo uma normalidade medicada, na qual 55,9% dos espanhóis, por exemplo, sentiram-se “muito tristes ou deprimidos”. Sem mencionar o aumento global do risco de suicídio durante a pandemia. Nesse contexto, logo depois da vacina, os antidepressivos despontam como o grande negócio da indústria farmacêutica no combate à chamada “fadiga pandêmica”. A assombrosa previsão de Huxley sobre a felicidade produzida quimicamente em “Admirável Mundo Novo”, tornou-se realidade. 

O segundo processo é a patologização da infelicidade. Espalha-se um discurso no qual a população é culpada ou responsabilizada pelos agravos físicos e mentais causados por uma overdose de realidade. É sempre mais fácil inventar eufemismos patologizantes como “fadiga pandêmica” do que reconhecer que aquilo que nos deprime e adoece são os problemas das sociedades disfuncionais com valores e prioridades invertidos. A destruição dos sistemas públicos de saúde, a precariedade do trabalho e a erosão da democracia são características da interminável pandemia neoliberal que o coronavírus apenas agravou. 

O terceiro é a mercantilização da felicidade. Em tempos de grande vulnerabilidade e incerteza, como o momento atual, a felicidade se torna uma reivindicação lucrativa e atraente para o mercado de autoajuda. Por meio de frases motivacionais enganosas, receitas para aliviar a ansiedade, e apelos retóricos a manter um pensamento positivo, vende-se a ideia de que qualquer um pode sentir-se feliz, independentemente de suas circunstâncias, como se a felicidade fosse uma questão sentimental, um estado psicológico simples, e só. Como bem lembra Franco Berardi, esse sentimento de felicidade imposto é uma consequência perversa do “felicismo” que invade nosso tempo, imperativo que impõe o dever permanente de mostrar que, apesar de tudo, se é feliz — ou pelo menos de aparentar isso, como fazem as redes sociais dia após dia. Nelas, ao invés de vivida, a felicidade é exibida ou simulada. 

Diante desse cenário, é preciso desmedicalizar e desmercantilizar a felicidade, que não pode ser adquirida em nenhuma farmácia, e nem brota milagrosamente das páginas de nenhum manual de autoajuda. Precisamos de uma felicidade habitável, e isso exige recuperarmos a sua matriz ética. Para os antigos filósofos gregos, a felicidade dependia do cultivo de um ethos compartilhado, daí a palavra ética. O ethos era uma qualidade, uma forma de ser e de se conduzir no mundo, voltada para o bem viver, a autorrealização pessoal; definitivamente, para uma vida feliz. Para Epicuro, por exemplo, a felicidade consistia em abandonar quatro medos ancestrais que afligem os seres humanos: medo da morte, medo dos deuses, medo do sofrimento e medo do futuro. Quatro medos impossíveis de superar sem a prática da amizade e da paz de espírito. 

Continuando com os exemplos, os filósofos astecas utilizavam a palavra neltiliztli para referir-se a uma vida vivida satisfatoriamente, uma vida “enraizada” e autêntica perante os inevitáveis deslizes da existência. Para alcançá-la, eles não apelavam para o sucesso individual, nem para os talentos mais capazes. O essencial para cultivar essas raízes era cuidar do corpo, da mente, da comunidade e da natureza. 

Em ambos exemplos, a felicidade não é um prêmio concedido por ser brilhante, nem um sentimento subjetivo que pode ser administrado à vontade. É um modo de vida valioso em si mesmo, uma jornada cheia de alegrias e tristezas, sucessos e contratempos, decepções e reconciliações, momentos frustrantes e situações reconfortantes. Um passeio que permite o aprendizado por meio de cada experiência; a prática de cuidar de si mesmo e dos outros; a libertação das convenções opressoras; a reconciliação com o irracional, o arriscado e o contingente da vida, bem como a reivindicação do que é público como espaço de laços compartilhados que abrem a possibilidade de um mundo melhor, pois como diz Audre Lorde, “sem comunidade não há libertação, não há futuro”. 

Se alguém me perguntasse em que consiste uma vida feliz, eu diria que não há uma resposta única para essa pergunta, mas lhe apresentaria o horizonte ético ao qual apontam as sábias e inspiradoras palavras de Bessie Stanley em seu poema “O que é o sucesso?”, de 1904; onde escreve: “Atingiu o sucesso aquele que ri com frequência e que tem amado muito; quem conquistou o respeito das pessoas inteligentes e o carinho das crianças; quem deixa o mundo melhor do que quando o encontrou, seja por meio de uma papoula melhorada, um poema perfeito ou uma alma resgatada; quem nunca deixou de apreciar a beleza da Terra; quem sempre busca o melhor lado dos demais e lhes dá o melhor lado que tem; aquele cuja vida foi inspiração e cuja lembrança, uma bênção”. A felicidade é isso, também.  

O autor Antoni Aguiló é filósofo, colunista e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nas áreas de filosofia, política e sexualidade, além de defensor dos direitos LGBTQIA+. Professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É também estreito colaborador do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, com quem tem diversas publicações a quatro mãos.  

Fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/a-felicidade-habitavel/

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