A indústria farmacêutica e a ciência médica

 

 

ERRANDO EM CHEIO – COMO A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA DISTORCE A CIÊNCIA

Por André Islabão para Medicina e saúde 

Imagine o seguinte experimento: uma centena de arqueiros devidamente treinados e com visão perfeita aguardam a ordem para disparar. À certa distância temos um alvo que os aguarda. Alguns segundos depois as flechas, lançadas com precisão milimétrica, se encontram no centro do alvo. Em um segundo momento – e por razões ainda desconhecidas – vários arqueiros são substituídos e passamos a contar com 25 dos arqueiros de precisão anteriormente citados e 75 arqueiros zarolhos que por uma infelicidade qualquer apresentam o mesmo tipo de estrabismo que os faz lançar as flechas sempre bem à direita do alvo. Alguns segundos após, as flechas são lançadas e o resultado beira o ridículo: enquanto um punhado de flechas atinge o alvo, uma enorme quantidade de flechas se acumula bem longe à direita do alvo, formando uma pilha que atrai toda a atenção dos espectadores. Como fazer para voltarmos a acertar o alvo? As opções mais óbvias seriam voltar a contratar os arqueiros que demonstraram a precisão no primeiro lançamento ou tentar corrigir o estrabismo dos arqueiros zarolhos, o que sabemos nem sempre ser possível fazer. O problema é que existe quem opte por soluções diferentes para o mesmo problema. 

Na medicina, os experimentos científicos considerados mais adequados para a testagem de intervenções médicas são os chamados ensaios clínicos randomizados e controlados (RCTs), os quais, juntamente com as revisões sistemáticas e metanálises, estão no topo da pirâmide hierárquica do paradigma científico atual, a Medicina Baseada em Evidências. Para que um estudo deste tipo seja preciso ele deve obedecer a todo um rigor científico, apresentando um delineamento metodológico perfeito e sendo executado de maneira absolutamente imparcial para tentar ao máximo evitar qualquer desvio que possa gerar os chamados vieses científicos, os quais tendem a desviar sistematicamente o estudo de seu objetivo de atingir a verdade científica em questão. Alguns desses vieses são bem conhecidos pelos profissionais, mas alguns outros não são passíveis de ser detectados pelas ferramentas usadas na análise dos estudos. Assim, um RCT “perfeito” seria aquele com um delineamento perfeito que fosse conduzido de maneira absolutamente imparcial por pesquisadores que não tivessem nenhum interesse pessoal em predeterminar os resultados do estudo (ausência de conflitos de interesse). 

Porém, a realidade atual da ciência médica é bem mais problemática: grande parte dos estudos que avaliam as intervenções médicas são patrocinados e conduzidos pela própria indústria que fabrica os medicamentos e que depois irá lucrar se os estudos forem bem-sucedidos. É importante ressaltar que o “bem-sucedido” aqui se refere ao sucesso financeiro para a empresa (lucro!) e, não, ao eventual sucesso terapêutico para os médicos e pacientes que poderiam se beneficiar caso os remédios fossem realmente efetivos. Segundo alguns autores, a proporção de estudos clínicos que são conduzidos pela própria indústria varia entre 60% e 75% [1],[2], o que é muito preocupante. Se a fonte de financiamento dos estudos influenciar os resultados dos estudos, essa proporção é suficientemente grande para distorcer toda a ciência e a nossa percepção sobre o real benefício das intervenções [3],[4]. É nesse ponto que as coisas se complicam. 

Já foi amplamente demonstrado que os estudos financiados pela indústria têm muito mais chances de chegar a resultados favoráveis ao medicamento e aos interesses da indústria [5],[6],[7],[8],[9],[10],[11],[12],[13]. Se considerarmos – como parece adequado fazer – que a verdade científica é alcançada pela perfeição metodológica aliada à imparcialidade, esses resultados favoráveis à indústria representariam, na verdade, um desvio em relação ao alvo de “verdade científica” buscado pela boa ciência. Se a situação é tão ruim no caso dos RCTs, ela não parece muito melhor no caso de revisões sistemáticas e metanálises, já que seria impossível fazer boas revisões sistemáticas usando RCTs enviesados [14],[15]. A própria natureza maleável dessas revisões sistemáticas já as torna suscetíveis a manipulações diversas [16]. Isso sem falar que tais estudos da indústria não costumam ser posteriormente replicados ou repetidos por pesquisadores independentes para confirmar ou refutar seus resultados. 

Se imaginarmos que o objetivo final de nossos arqueiros-pesquisadores seja alcançar o alvo exato da verdade científica, fica claro que deveríamos evitar a todo custo arqueiros zarolhos e estudos patrocinados e controlados pela indústria. Seguir permitindo que até 75% da pesquisa médica seja patrocinada pela indústria é como tentar que as flechas atinjam o alvo manipulando a posição deste. Estaríamos arrastando o alvo mais para a direita para que as flechas enviesadas o acertassem. Com isso estamos reinventando a verdade ou criando uma narrativa distorcida do que seja a verdade científica. O verdadeiro alvo da ciência deveria sempre ser a busca da verdade e o real benefício clínico do paciente, mas, ao que parece, temos esquecido disso e nos deixado guiar cegamente por uma indústria que coloca o lucro acima de qualquer eventual benefício. 

É evidente que a grande maioria dos pesquisadores é formada por profissionais sérios que trabalhariam com a mesma dedicação (ou até mais) se fossem financiados por fontes governamentais ou independentes. O problema é que nosso sistema de pesquisa privilegia a indústria. Os governos tentam economizar investimentos na ciência e acabam dando um tiro no próprio pé. Se os governos do mundo todo criassem um sistema que fosse capaz de escrutinizar os dados clínicos dos estudos [17],[18],[19] que são mantidos sob sigilo pela indústria farmacêutica ou de repetir os estudos conduzidos pela indústria para confirmar os resultados antes da aprovação definitiva de qualquer novo medicamento – principalmente aqueles de custo indecente –, acabariam economizando muito dinheiro, já que grande parte dos resultados “positivos” para a indústria não seriam demonstrados por esses estudos independentes e imparciais. Assim, a fortuna economizada com a não utilização de intervenções ineficazes ou com relação custo-benefício imoral poderia ser usada em outras iniciativas que comprovadamente trouxessem benefício à população.

Muitas vezes não é possível corrigir um olhar enviesado, mas geralmente dá para deixar de ser bobo.

Referências:  

[1] https://theconversation.com/time-to-end-drug-company-distortion-of-medical-evidence-127495 

[2] https://undsci.berkeley.edu/article/who_pays 

[3] https://facultystaff.richmond.edu/~bmayes/pdf/relmanangell_Rxdrugs.pdf 

[4] https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/frma.2021.614013/full 

[5] https://www.bmj.com/content/326/7400/1167 

[6] https://www.cochrane.org/MR000033/METHOD_industry-sponsorship-and-research-outcome 

[7] https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.0040184 

[8] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/eci.12074 

[9] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30132025/ 

[10] https://www.jstor.org/stable/27720157 

[11] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/192011 

[12] https://journals.plos.org/plosmedicine/article?id=10.1371/journal.pmed.0020138 

[13] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846 

[14] https://www.matteringpress.org/wp-content/uploads/2018/07/Sismondo-Ghost-managed-Medicine-2018-1.pdf 

[15] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26399904/ 

[16] Stegenga J. Medical Nihilism; 2018. 

[17] https://www.bmj.com/content/351/bmj.h4320 

[18] https://blog.okfn.org/2012/11/19/the-tamiflu-story-why-we-need-access-to-all-data-from-clinical-trials/ 

[19] https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27176755/ 

Fonte: https://andreislabao.com.br/2021/10/16/errando-em-cheio-como-a-industria-farmaceutica-distorce-a-ciencia/?fbclid=IwAR0a9nq0LU44ChN7toEAM7IwypWFCSIIZoUGwwO1VkeozzumoeoG1HLuKYA

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