Da toxicomania à adicção: uma abordagem relacional
Por Ricardo de Lima Sedeu (Bacharel em Ciências Econômicas pela UFRJ. Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro)
Introdução
A toxicomania é inegavelmente um dos problemas mais proeminentes na psicopatologia da pós-modernidade, juntamente com a depressão e a síndrome do pânico (BIRMAN, 1999). É patente o aumento do número de casos no mundo nas últimas décadas, o que faz a toxicomania ser considerada um dos principais “flagelos da humanidade” no mundo atual
Em 1960 Herbert Rosenfeld apontava uma escassez de contribuições psicanalíticas recentes (na época) sobre a toxicomania, pois “a grande maioria dos trabalhos sobre o assunto é anterior a 1945” (ROSENFELD, [1960] 1968, p. 148). Quatro anos depois, em uma extensa revisão crítica da literatura psicanalítica existente sobre a toxicomania (ROSENFELD, [1964] 1968), o autor só consegue citar dois trabalhos de S. Rádo, um de E. Simmel e um de J. Meerloo posteriores a 1945.
Cinquenta anos depois, o quadro é bem diferente: verificamos que, em consonância com o crescimento da importância do problema, também vem aumentando nos últimos anos a produção de textos psicanalíticos sobre o tema. Grande parte desses textos, contudo, em especial os disponíveis no Brasil (em sua maioria, de orientação lacaniana), analisa a questão da toxicomania principalmente sob um ponto de vista estrutural-pulsional (GREENBERG; MITCHELL, 1994), intrassubjetivo, com ênfase no papel da pulsão de morte como impulsionadora da busca incessante do indivíduo pelo gozo no uso da droga.
Sem desconsiderar a importância e a validade do modelo pulsional, entendemos, no entanto, ser fundamental ampliarmos a visão de um assunto tão complexo como é a toxicomania, incorporando as contribuições referentes a outras abordagens psicanalíticas. No que se refere às diversas escolas de pensamento psicanalítico, concordamos com Christopher Bollas quando afirma:
Acho que cada uma das escolas, em alguns pontos, polemiza um único aspecto da vida analítica. Cada freudiano poderia também ser um kohutiano, um kleiniano, um winnicottiano, um lacaniano e um bioniano em potencial, já que cada uma dessas escolas reflete somente uma certa perspectiva analítica limitada (BOLLAS, 1992, p. 117).
Em outras palavras, cada escola prioriza um determinado aspecto da vida analítica, sendo importante conhecer as diversas abordagens para uma visão mais ampla dos problemas psíquicos – conhecimento que deve, a nosso ver, ser profundo o suficiente para evitar os perigos de um “ecletismo” que obscureça as divergências teóricas existentes entre as várias escolas. Ainda segundo Bollas,
[...] a tarefa do analista contemporâneo é compreender as muitas escolas do pensamento analítico, uma vez que cada uma representa uma função analítica específica que necessita ser incluída no campo psicanalítico (BOLLAS, 1992, p. 119).
Assim sendo, pretendemos, no presente artigo, contribuir para uma abordagem psicanalítica da questão da toxicomania de uma forma mais ampla, destacando autores que adotam um ponto de vista “relacional”, intersubjetivo, vinculado ao que Jay Greenberg e Stephen Mitchell chamam “teoria de relações objetais”. De acordo com esses autores, o termo designa
[...] teorias, ou aspectos de teorias, relacionadas com o explorar relacionamento entre pessoas reais externas e imagens e resíduos internos relacionados com elas e o significado de tais resíduos para o funcionamento psíquico (GREENBERG; MITCHELL, 1994, p. 7).
Em outras palavras, refere-se “às interações dos indivíduos com outras pessoas externas e internas (reais e imaginadas) e à relação entre seus mundos objetais interno e externo” (GREENBERG; MITCHELL, 1994, p. 8).
Na impossibilidade de apresentar aqui os diferentes enfoques dos autores que trataram do tema da toxicomania sob essa perspectiva relacional, optamos por abordar neste artigo as contribuições de dois importantes autores: Donald W. Winnicott, que introduz alguns conceitos muito importantes para a análise do problema, e Joyce McDougall, que desenvolve, a partir de conceitos winnicottianos, uma abordagem mais global sobre o que chama de “economia psíquica da adicção”.
Donald W. Winnicott (I): objetos e fenômenos transicionais
Não encontramos nenhum livro ou artigo específico sobre o tema da toxicomania escrito por Donald W. Winnicott; no entanto, alguns de seus artigos introduzem conceitos muito úteis para a análise do problema:Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951), A capacidade para estar só (1958) e Cordão: uma técnica de comunicação (1960).
O autor inicia o artigo Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951) indicando que pretende estudar o que acontece na passagem entre um primeiro momento, em que o bebê usa o punho, os dedos ou os polegares para estímulo da zona erógena oral (lembremos a descrição freudiana do “chuchar” no segundo dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905), e um segundo momento, meses mais tarde, em que os bebês passam a gostar de brincar com objetos e “a maioria das mães permite a seus bebês algum objeto especial, esperando que eles se tornem, por assim dizer, adictos a tais objetos” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 389, grifo nosso).
Esse objeto específico (em geral um pano, um ursinho de pelúcia, uma boneca, etc.) é, segundo Winnicott, a “primeira possessão não eu do bebê”, que assume direitos (reconhecidos pelos pais) sobre o objeto, amando-o e manipulando-o como quiser: mordendo-o, acariciando-o, mutilando-o, etc. Como símbolo do seio materno (objeto da primeira relação), esse objeto se torna importante para o bebê, constituindo para ele uma “defesa contra a ansiedade” na hora de dormir e em momentos de solidão ou depressão. De acordo com o autor:
É claro que algo mais é importante aqui, além da excitação e da satisfação orais, embora estas possam ser a base de todo o resto. Muitas outras coisas importantes podem ser estudadas, tais como: 1. A natureza do objeto; 2. A capacidade do bebê de reconhecer o objeto como não-eu; 3. A localização do objeto – fora, dentro, na fronteira; 4. A capacidade do bebê de criar, imaginar, inventar, originar, produzir um objeto; 5. O início de um tipo afetuoso de relação de objeto (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 390, grifo do autor).
Winnicott fará mais tarde, na introdução de O brincar e a realidade (1971) uma observação importante para o correto entendimento do que está sendo discutido neste artigo:
[...] aquilo a que me refiro nesta parte de meu trabalho não é o pano nem o ursinho que o bebê usa; não tanto o objeto usado quanto o uso do objeto (WINNICOTT, 1975, p. 10, grifo nosso).
Voltando ao artigo de 1951, o autor introduz os termos “objetos transicionais” e “fenômenos transicionais” para designar
[...] a área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 390).
Assim, entre a realidade externa (mundo real) e a realidade interna (mundo interior) há uma “área intermediária de experimentação”, que existe como “lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas”, uma “área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 391). Como o bebê ainda não desenvolveu plenamente sua capacidade de reconhecer e aceitar a realidade (“teste da realidade”), Winnicott afirma que está, “portanto, estudando a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao bebê e que, na vida adulta, é inerente à arte e à religião” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 391, grifo do autor).
O tema da ilusão e sua importância para o bebê é desenvolvido mais adiante, quando Winnicott descreve o que seria uma “mãe suficientemente boa”:
[...] aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 401)
De início, essa mãe se adapta quase completamente às necessidades do bebê: “A mãe coloca o seio real exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 402). Assim, o bebê tem a “ilusão” de que o seio faz parte dele e está sob seu total controle onipotente (mágico) – ou seja, de que a realidade externa corresponde à sua própria capacidade de criar. Nas palavras do autor, “psicologicamente, o bebê recebe de um seio que faz parte dele e a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 403).
Na medida em que o tempo passa, a adaptação da mãe ao bebê vai diminuindo gradativamente, segundo a crescente capacidade do bebê em lidar com a frustração. Essa adaptação incompleta favorece o desenvolvimento psíquico do bebê, pois “torna reais os objetos, o que equivale a dizer, tão odiados quanto amados” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 401; poderíamos dizer, numa linguagem kleiniana, que essa “frustração ótima” ajudaria o bebê na passagem da posição esquizoparanoide – objetos parciais – para a posição depressiva – objetos totais).
Aqui entra a importância dos fenômenos e objetos transicionais, área intermediária de experiência que permite o alívio das tensões do bebê relacionadas à tarefa de aceitação da realidade (desilusão) e, portanto, “necessária para o início de um relacionamento entre a criança e o mundo” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 404). O reconhecimento intuitivo pelos pais dessas tensões por que passa o bebê faz com que eles não contestem o objeto transicional quanto a sua subjetividade (“você concebeu isso?”) ou objetividade (“ou foi-lhe apresentado do exterior?”).
Na saúde, o destino do objeto transicional é ser, com o passar dos anos, gradativamente descatexizado pela criança, tornando-se “não tanto esquecido, mas relegado ao limbo” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 394). Em outras palavras: o objeto transicional perde o seu significado especial para a criança, pois uma vez que vai se ampliando o seu âmbito de interesses, os fenômenos transicionais se difundem, espalhando-se por todo o campo cultural. Segundo Winnicott:
Nesse ponto, meu tema se amplia para o do brincar, da criatividade e apreciação artísticas, do sentimento religioso, do sonhar e também do fetichismo, do mentir e do furtar, a origem e a perda do sentimento afetuoso, o vício em drogas, o talismã dos rituais obsessivos etc. (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 395, grifo nosso).
A descatexização também pode acontecer, no entanto, de uma forma patológica, cuja descrição aqui é importante para comparação com a abordagem da adicção que será desenvolvida posteriormente por Joyce McDougall. Para Winnicott, “o bebê pode usar um objeto transicional quando o objeto interno está vivo e é real e suficientemente bom (não muito persecutório)” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 400).
Isso depende, contudo, da “presença e vitalidade do objeto externo” (mãe real); “o fracasso deste em alguma função essencial leva indiretamente à morte, ou a uma qualidade persecutória do objeto” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 400, grifo nosso). Com a inadequação persistente do objeto externo ao longo do tempo, “o objeto interno deixa de ter sentido para o bebê, e então – e somente então – o objeto transicional também fica sem sentido” (WINNICOTT, [1951] 1993, p. 400, grifo nosso). Podemos relacionar essas ideias à “mãe morta” descrita por André Green, uma mãe “que permanece viva, mas que está por assim dizer morta psiquicamente aos olhos da pequena criança de quem ela cuida” (GREEN, [1980] 1988, p. 247).
A análise dessa questão é desenvolvida posteriormente por Winnicott no capítulo VII de O brincar e a realidade(1971), onde ele afirma que o uso do objeto transicional pelo bebê simboliza a união mãe-bebê num momento de transição entre a fusão e a separação. No entanto,
[...] a representação mental no mundo interno é mantida significante, ou a imago do mundo interno é mantida viva, por meio do reforço concedido pela disponibilidade da mãe externa separada e concreta, juntamente com sua técnica de cuidado infantil (WINNICOTT, 1975, p. 135).
O autor, em seguida, apresenta a seguinte formulação do problema, que leva em conta o peso do fator temporal:
O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em x+ y + z minutos, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de modo que as defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição da ‘ansiedade impensável’ ou contra o retorno do agudo estado confusional próprio da desintegração da estrutura nascente do ego (WINNICOTT, 1975, p. 135-136, grifos nossos).
A situação descrita por Winnicott também foi observada por René Spitz, que cunhou o termo “depressão anaclítica” (ou “privação afetiva parcial”) para designar
[...] perturbações que evocam clinicamente as da depressão no adulto e que aparecem progressivamente na criança privada da mãe depois de ter tido com ela, pelo menos durante os seis primeiros meses de vida, uma relação normal (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 53).
De acordo com as observações efetuadas por Spitz (em crianças que, entre o sexto e o oitavo mês de vida, ficaram privadas da mãe), a partir do terceiro mês de ausência da mãe as crianças desenvolviam uma espécie de rigidez na expressão facial:
[...] os olhos abertos e inexpressivos, o rosto frio e imóvel, e um olhar distante, como se estivessem em estado de estupor, aparentemente sem ver o que acontecia ao redor delas (SPITZ, 1988, p. 201).
O sintoma era acompanhado por outros: lamúria, letargia, declínio no quociente de desenvolvimento, perda de peso. O autor verificou que, caso a mãe retornasse entre o terceiro e o quinto mês de ausência, a maioria das crianças se recuperava rapidamente; caso contrário, o quadro se agravava, evoluindo para o estado crônico que denominou “hospitalismo” (ou “privação afetiva total”). Mesmo com o retorno da mãe antes do quinto mês de ausência, contudo, segundo Spitz, “não há certeza de que a recuperação seja completa; penso que o distúrbio deixa marcas que aparecerão nos anos posteriores, mas ainda não se têm provas definitivas disso” (SPITZ, 1988, p. 203-204).
No final do artigo de 1951, Winnicott faz algumas proposições sobre a aplicação da teoria dos objetos e fenômenos transicionais à psicopatologia e afirma que “a adicção pode ser expressa em termos de uma regressão ao estádio primitivo no qual os fenômenos transicionais são incontestados” (WINNICOTT, [1951]1993, p. 407, grifo do autor).
Essa assertiva, suprimida na versão que republicada no capítulo I de O brincar e a realidade (1971), é substituída por uma seção que trata da “psicopatologia manifestada na área dos fenômenos transicionais” – onde é relatado o caso do “menino do cordão”, republicação do artigo Cordão: uma técnica de comunicação(1960), de que trataremos mais à frente.
Donald W. Winnicott (II): a “capacidade para estar só”
No artigo A capacidade para estar só (1958), Winnicott discorre sobre a capacidade do indivíduo de ficar só, que considera “um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 31). Começa por apontar que a literatura psicanalítica tem se preocupado mais em analisar o medo ou o desejo de ficar só do que a “capacidade” de fazê-lo e chama a atenção para os aspectos positivos dessa capacidade. Não se trata aqui da pessoa que está realmente sozinha porque não tem companhia (e pode estar sofrendo com isso), mas da que tem a capacidade de apreciar o fato de estar só, mesmo que esteja acompanhada.
Essa capacidade, segundo o autor, se desenvolveria a partir da experiência infantil de “ficar só, como lactente ou criança pequena, na presença da mãe” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 32, grifo do autor). O cuidado dedicado proporcionado pela mãe identificada com o seu lactente (a “mãe suficientemente boa”, já descrita acima) permite que um “objeto bom” exista na realidade psíquica (mundo interno) do lactente, diminuindo sua ansiedade persecutória e lhe dando “confiança no ambiente” (mundo externo), bem como “autossuficiência para viver, de modo que ele ou ela fica temporariamente capaz de descansar contente mesmo na ausência de objetos ou estímulos externos” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 34).
No início do artigo (p. 31), o autor faz uma referência ao conceito de “relação (objetal) anaclítica”, conforme descrito por Freud em 1914 (no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução), mas não tece maiores considerações sobre esse conceito. J. Laplanche e J.-B. Pontalis definem a escolha de objeto anaclítica (ou de apoio) da seguinte forma:
Tipo de escolha de objeto em que o objeto de amor é eleito a partir do modelo das figuras parentais enquanto estas asseguram à criança alimento, cuidados e proteção (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 209).
Pode-se relacionar esse conceito freudiano com a ideia (kleiniana) utilizada por Winnicott de segurança do indivíduo nas relações com o mundo externo, a partir da existência de um objeto bom no mundo interno.
De início, segundo Winnicott, “a imaturidade do ego [do bebê] é naturalmente compensada pelo apoio do ego da mãe” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 34, grifos do autor). Assim, para o bebê, a mãe está “confiantemente presente, ainda que representada por um momento por um berço ou um carrinho de bebê, ou pela atmosfera geral do ambiente próximo” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 33). Com o passar do tempo, a criança
[...] introjeta o ego auxiliar da mãe e dessa maneira se torna capaz de ficar só sem apoio frequente da mãe ou de um símbolo da mãe (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 34).
A essa relação desenvolvida entre a criança e o ego auxiliar da mãe, Winnicott denomina “relacionamento com o ego”. De acordo com o autor, o “estar só” depende da percepção (mesmo que inconsciente) pela criança da “existência contínua de uma mãe disponível cuja consistência torna possível para a criança estar só e ter prazer em estar só, por períodos limitados” (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 35, grifo nosso; compare-se com a situação descrita acima, de privação materna levando à descatexização patológica do objeto transicional).
Para Winnicott, a capacidade para estar só permite ao indivíduo descobrir sua vida pessoal própria, relaxar, devanear,
[...] ser capaz de existir por um momento sem ser nem alguém que reage às contingências externas nem uma pessoa ativa com uma direção de interesse ou movimento (WINNICOTT, [1958] 1982, p. 35-36).
Segundo Eduardo Kalina (em artigo de 2001 no qual analisa a relação da “capacidade para estar só” com a toxicomania), os valores socioeconômicos do mundo atual agem no sentido oposto, promovendo “uma necessidade de ‘entorpecer’ (embrutecer) nosso estado mental para fins de adaptá-lo aos novos ideais sociais de um homem ‘robótico’” (KALINA, 2001, p. 104). Nesse contexto,
[...] estar só é equiparado à depressão e o depressivo é o estado mais evitado, considerado insuportável, tratando-se de encobri-lo de qualquer forma e a qualquer custo (KALINA, 2001, p. 104).
Assim, é necessário “fugir de si mesmo” o tempo todo, estimulando-se os estados maníacos, as condutas psicopáticas e as adicções: “comprar, drogar-se, não pensar” (KALINA, 2001, p. 104). Para o autor:
Nem o fator predisposicional, que deveria ser formado pelo núcleo de um ego forte, nem as condições psicossociais e terapêuticas em que se desenvolve a vida atual favorecem a busca prazerosa da “capacidade de estar só” de que nos falava Winnicott. A consequência paradoxal disso é a condenação a uma tremenda solidão indesejada, estado angustiante que alimenta e, por sua vez, se realimenta, com o uso abusivo de drogas, culminando esse processo na busca da morte como o estado ideal. Ou seja, a possibilidade de se obter um estado mental no qual não exista a angústia, nem os conflitos (KALINA, 2001, p. 104, grifo nosso).
Donald W. Winnicott (III): o “menino do cordão” (patologia transicional)
No capítulo I de O brincar e a realidade (1971), antes da reprodução do artigo Cordão: uma técnica de comunicação (1960), Winnicott discorre sobre “o modo como a separação pode influenciar os fenômenos transicionais” (WINNICOTT, 1975, p. 31). Apresenta a ideia (já discutida acima) que irá desenvolver no capítulo VII do mesmo livro, de que a ausência da mãe por um determinado período faz com que sua representação interna no bebê se esmaeça e, concomitantemente, os fenômenos transicionais percam gradativamente o sentido que têm para ele. Verifica-se, contudo, que:
Exatamente antes da perda, podemos às vezes perceber o exagero no uso de um objeto transicional como parte da negação de que haja ameaça de ele se tornar sem sentido (WINNICOTT, 1975, p. 31, grifo do autor).
O caso do “menino do cordão” ilustra bem esse fato. No artigo Cordão: uma técnica de comunicação (1960), Winnicott descreve o caso de um menino de sete anos que lhe foi encaminhado por apresentar uma série de sintomas que, segundo o médico da família, poderiam indicar um distúrbio de caráter: mudanças súbitas de humor, dizer coisas que assustavam as pessoas (p. ex., que ia cortar a pessoa “em pedacinhos”), lamber pessoas e coisas, fazer ruídos com a garganta, recusar-se a evacuar. Além do menino, os pais tinham uma filha de dez anos (com deficiência mental) e outra com quatro anos de idade. A mãe apresentava depressão e já havia sido hospitalizada por causa disso durante dois meses (quando o menino tinha quatro anos e nove meses).
Na entrevista inicial com a criança, Winnicott costumava aplicar uma técnica que ele chamava de “jogo de rabiscos” (“squiggle game”), com objetivo de diagnóstico e para facilitar a comunicação interacional. No artigo, o autor descreve a técnica da seguinte maneira:
[...] neste jogo faço certo tipo de desenho linear impulsivo e convido a criança que estou entrevistando a transformá-lo em alguma coisa e então ele faz um rabisco para eu transformar em algo por minha vez (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 141).
Ao aplicar o “jogo de rabiscos” ao menino, Winnicott verificou que a maioria dos desenhos resultantes estava relacionada a cordões: laço, chicote, relho, cordão de ioiô, etc. Perguntou, então, aos pais sobre essa preocupação do menino com cordões:
Responderam-me que se alegravam que eu tivesse levantado esta questão, mas que não a tinham mencionado por não estarem certos de seu significado. Disseram que o menino ficara obcecado com tudo que se relacionasse com cordão e que sempre que entravam em uma sala podiam constatar que ele tinha unido mesas e cadeiras; e poderiam achar uma almofada, por exemplo, com um cordão ligando-a à lareira. Disseram que a preocupação do menino com cordões se desenvolvera gradativamente como uma nova feição sua, que os tinha preocupado ao invés de os interessar. Que ele tinha recentemente atado um cordão ao pescoço de sua irmã (aquela cujo parto provocou a primeira separação dele com a mãe) (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 141).
Como só poderia rever o menino e os pais a cada seis meses (pois eles moravam no campo), Winnicott optou por orientar a mãe sobre o que estava acontecendo com o seu filho e como deveria agir: explicou-lhe que o menino tinha receio de se separar da mãe e tentava negar essa separação através do uso excessivo do cordão; quando se apresentasse a ocasião adequada, ela deveria ventilar o assunto com o menino e, de acordo com a reação dele, conversar com ele sobre o tema da separação.
Seis meses depois, ao rever a família, Winnicott perguntou à mãe sobre o que tinha acontecido. Ela lhe relatou que tinha conversado com o menino sobre a questão das separações ocorridas entre eles e que o menino demonstrara ansiedade em falar sobre o medo da perda de contato com ela; após a conversa, o brinquedo com cordões cessou.
Um ano depois, antes de uma hospitalização da mãe para uma operação, o menino voltou à preocupação com cordões; uma conversa da mãe explicando que a operação seria rápida e que ela retornaria em alguns dias foi suficiente para o fim da brincadeira com cordões. Quatro anos depois, num período em que a mãe estava deprimida e o pai desempregado, o menino voltou novamente a brincar com cordões, chegando a se pendurar numa árvore amarrado pelos pés, fingindo-se de morto. Após dois meses, com a melhora da situação no lar (o pai arranjou um emprego, e a família foi viajar de férias), a nova fase de uso excessivo dos cordões terminou.
Winnicott relata que, aos onze anos de idade, o menino mantinha uma coleção de ursos de pelúcia, aos quais tratava como crianças, inclusive costurando roupas para eles. Quando chegava uma visita, ele rapidamente colocava os ursos na cama da irmã para que ninguém soubesse que ele tinha essa família de ursos. Segundo o autor, o menino estava desenvolvendo “uma identificação materna baseada em sua própria insegurança em relação a sua mãe, e que pode se desenvolver no sentido da homossexualidade” (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143); já a preocupação com cordões “poderia se desenvolver no sentido de uma perversão” (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143).
Analisando o simbolismo relacionado ao cordão, Winnicott identifica algo que “une do mesmo modo que auxilia no embrulhar de objetos e na manutenção de material não integrado” (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143). Assim, o uso excessivo de cordões funcionava como uma técnica de comunicação por meio da qual o menino expressava sua insegurança. Essa forma de expressão poderia evoluir para uma perversão na medida em que a função do cordão mudasse “de união para negação de separação” (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143, grifo do autor), caso em que o cordão se tornaria “algo por si mesmo, algo que tem propriedades perigosas e que tem de ser dominado” (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143, grifos nossos).
No caso apresentado, segundo Winnicott, a mãe pôde agir a tempo, enquanto o uso do cordão “ainda traduzia esperança”. De acordo com o autor:
Quando a esperança está ausente e o cordão representa a negação de separação, então um estado de coisas muito mais complexo se origina – que se torna difícil de curar, por causa dos ganhos secundários que se originam da habilidade que se desenvolve quando um objeto tem de ser manipulado para ser dominado (WINNICOTT, [1960] 1982, p. 143, grifo nosso).
No capítulo I de O brincar e a realidade (1971), logo após apresentar o caso do “menino do cordão” (republicação do artigo de 1960), Winnicott acrescenta uma nota datada de 1969, na qual informa que, após uma década, percebeu que o menino não poderia ser curado enquanto permanecesse ligado à moléstia depressiva da mãe. Ao chegar à adolescência, o menino tornou-se um viciado em drogas, e não se conseguia tirá-lo de casa para tratamento: “Todas as tentativas para colocá-lo longe da mãe falharam, porque normalmente fugia e voltava para casa” (WINNICOTT, 1975, p. 37). A nota é finalizada com a seguinte pergunta: “um investigador que efetuasse um estudo desse caso de vício em drogas daria a devida consideração à psicopatologia manifestada na área dos fenômenos transicionais?” (WINNICOTT, 1975, p. 37).
Joyce McDougall: a adicção como patologia transicional
O livro de Joyce McDougall As múltiplas faces de Eros (publicado originalmente em 1995) tem como subtítulo “uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana”, tema que a autora procura tratar nos seus diversos aspectos. No capítulo 11 (As neo-necessidades e as sexualidades adictivas), McDougall apresenta o conceito de “neonecessidades”, em que “o objeto, o objeto parcial ou a prática sexuais são buscados incansavelmente, à maneira de uma droga” (MCDOUGALL, 2001, p. 198, grifo da autora). Antes, contudo, de se aprofundar na análise do problema específico da sexualidade adictiva, a autora desenvolve algumas considerações sobre o que chama de “economia adictiva”, o modo de funcionamento psíquico que leva ao comportamento adictivo em geral.
A autora relata que teve sua atenção despertada para a questão da economia psíquica subjacente ao comportamento adictivo ao atender a mãe de um menino psicótico que tinha sido seu paciente. Prestes a se tornar alcoólatra, ela descreveu seu impulso irresistível de beber com as seguintes palavras: “Algumas vezes não sei se estou triste ou zangada ou com fome ou se estou querendo fazer sexo – e é aí que começo a beber” (MCDOUGALL, 2001, p. 199). Essa fala da paciente tornou claro para McDougall que “um dos objetivos do comportamento adictivo era livrar-se de sentimentos” (MCDOUGALL, 2001, p. 199, grifo nosso).
Mais tarde, quando decidiu parar de fumar, a autora se defrontou com as pressões que a impeliam a adotar um hábito adictivo, chegando à conclusão de que “criava uma cortina de fumaça por cima da maioria de meus estados afetivos, neutralizando dessa maneira ou dispersando uma parte vital de meu mundo interior” (MCDOUGALL, 2001, p. 200). A autora relata a partir de então se dedicou a tentar conceituar a estrutura psíquica do comportamento adictivo.
Ao estudar o assunto mais a fundo, McDougall verificou que o termo “adicção” não existia em francês; só havia referência à “toxicomania”, com seu significado literal de “desejo louco por veneno”. A autora, no entanto, a partir de suas observações clínicas e experiência pessoal, entendia que a busca do objeto adictivo não implicava um desejo de se envenenar, mas “um ato que carregava a ilusão de fazer algo para ajudar a si mesmo em meio às dificuldades da vida cotidiana” (MCDOUGALL, 2001, p. 199, grifo nosso). Assim, portanto, recusou o uso do termo “toxicomania”, substituindo-o por “adicção”.
Segundo Eduardo Kalina e Santiago Kovadloff (1980, p. 24), “adicto” vem do latim addictum, termo que designava o cidadão que, na antiga República Romana, se oferecia como escravo para um outro como pagamento de uma dívida. Em seu texto, McDougall afirma que etimologicamente o termo “adicção” “[...] refere-se a um estado de escravidão” (MCDOUGALL, 2001, p. 198). O adicto pode até se sentir escravizado pelo objeto da adicção (droga, alimento, pessoa, etc.), mas paradoxalmente esse objeto é vivenciado como essencialmente “bom”, chegando às vezes a “[...] tornar-se a única busca que é sentida como dando significação à vida do indivíduo” (MCDOUGALL, 2001, p. 198).
A função do comportamento adictivo na economia psíquica do indivíduo é “[...] dissipar sentimentos de angústia, raiva, culpa, depressão ou qualquer outro estado afetivo que dê origem a uma tensão psíquica insuportável” (MCDOUGALL, 2001, p. 198), tensão que pode incluir afetos prazerosos que dão origem a sentimentos de excitação percebidos como proibidos ou perigosos. Uma vez descoberto,
[...] o recurso à substância ou ao ato adictivo é mantido sempre à mão a fim de atenuar essas vivências emocionais quando quer que isso seja necessário, mesmo por um curto período de tempo (MCDOUGALL, 2001, p. 199).
A autora ressalta que todas as pessoas estão sujeitas a se entregar temporariamente a comportamentos adictivos (beber ou comer demais, usar drogas farmacológicas, envolver-se em aventuras fugazes, etc.) para escapar rapidamente de situações afetivas dolorosas que ultrapassem os recursos habitualmente utilizados para lidar com a tensão psíquica.
Retomando o conceito winnicottiano de “mãe suficientemente boa”, McDougall afirma que, se a atitude fusional da mãe com o seu bebê nas primeiras semanas de vida for prolongada além desse período, a interação mãe-bebê passa a ser sentida por este como persecutória e patológica, afetando o desenvolvimento dos fenômenos transicionais e gerando no bebê um “medo de desenvolver seus próprios recursos psíquicos para lidar com a tensão” (MCDOUGALL, 2001, p. 201).
Para a autora, a motilidade, a vivacidade emocional e a erogeneidade corporal do bebê só podem ser desenvolvidas na medida em que a mãe as invista positivamente:
Ela pode, com a mesma facilidade, inibir a intensificação narcísica desses aspectos na estrutura somatopsíquica do bebê, se este estiver servindo para atenuar uma necessidade não satisfeita do mundo interno dela própria (MCDOUGALL, 2001, p. 201, grifo da autora).
Segundo McDougall, devido a suas próprias angústias, temores e desejos inconscientes, a mãe poderá ser
[...] potencialmente capaz de instilar em seu lactente aquilo que pode ser conceituado como um relacionamento adictivo com a presença dela e suas funções de cuidados. Num certo sentido, é a mãe [nesse caso] quem está num estado de “dependência” em relação a seu bebê (MCDOUGALL, 2001, p. 201, grifo da autora).
Nessa situação, como não consegue desenvolver adequadamente a sua “capacidade para estar só”, o bebê passa a buscar constantemente a presença da mãe para lidar com quaisquer experiências afetivas motivadas seja por causas internas (pressões psicológicas), seja por causas externas (influências ambientais). O bebê, portanto, não consegue
[...] estabelecer uma representação interna de uma figura materna (e, mais tarde, paterna) que cumpra as funções que incluem a capacidade para conter e lidar com a dor psicológica ou com estados de superexcitação (MCDOUGALL, 2001, p. 201).
Não podendo se identificar com essa representação interna, a criança fica incapaz de cuidar de si mesma e de se tranquilizar frente às tensões de origem interna ou externa, buscando suprir essa “falha no mundo interno” com “objetos do mundo externo”. Assim, as drogas, a comida, o fumo, etc. são descobertos como objetos que podem preencher essa função materna, atenuando os estados mentais dolorosos com os quais o indivíduo não consegue lidar sozinho. Esses objetos são chamados pela autora de “objetos adictivos” e, segundo ela,
[...] tomam o lugar dos objetos transicionais da infância, os quais corporificavam o ambiente materno e, ao mesmo tempo, liberavam a criança da dependência total da presença da mãe (MCDOUGALL, 2001, p. 201-202, grifo nosso).
Diferentemente dos objetos transicionais, no entanto, os objetos adictivos falham em sua função, proporcionando apenas um alívio temporário, pois “constituem tentativas antes somáticas do que psicológicas para lidar com a ausência” (MCDOUGALL, 2001, p. 202). São para a autora objetos antes “transitórios” do que “transicionais”.
Segundo McDougall, portanto, “a solução adictiva é uma tentativa de cura de si mesmo diante de estados psíquicos ameaçadores” (MCDOUGALL, 2001, p. 202, grifo nosso). Esses estados psíquicos podem ser classificados em três categorias, conforme a gravidade do problema a ser atenuado com a solução adictiva:
• Angústias neuróticas (conflito em relação aos direitos do adulto ao prazer nas relações amorosas, sexuais, sociais e com o trabalho);
• Angústia grave (muitas vezes paranoide) ou depressão (com sentimento de morte interior);
• Angústias psicóticas (medo da fragmentação corporal ou psíquica, sentimento de perigo à própria identidade subjetiva).
Dado que “a privação no mundo das representações objetais internas não pode ser reparada por substâncias ou objetos encontrados no mundo externo” (MCDOUGALL, 2001, p. 202), o indivíduo acaba recorrendo compulsivamente ao objeto adictivo. Além da descarga das pressões afetivas insuportáveis, busca-se com a solução adictiva reparar uma autoimagem avariada, o que implica uma tentativa de “acerto de contas” com as figuras parentais do passado. Segundo McDougall, esse desafio ocorre de três maneiras:
• Desafio ao objeto materno interior ausente ou falho: o objeto adictivo aparece como “disponível como figurante das funções maternas que faltam” (MCDOUGALL, 2001, p. 203) – a mensagem implícita é “Nunca mais você poderá me abandonar; daqui para a frente eu a controlo!” (MCDOUGALL, 2001, p. 203, grifo da autora);
• Desafio ao pai interno: dispensado, por ser considerado como falho em suas funções parentais (o que é, tipicamente, projetado na sociedade) – a mensagem implícita é “Não me interessa o que você pensa de mim ou dos meus atos – vá para o inferno!” (MCDOUGALL, 2001, p. 203);
• Desafio à própria morte, que se apresenta de duas formas: primeiro, uma atitude onipotente, em que a mensagem implícita é “nada me atinge – a morte é para os outros” (MCDOUGALL, 2001, p. 203); posteriormente, quando “o sentimento de morte interior não pode ser mais negado, há a entrega aos impulsos de morte” (MCDOUGALL, 2001, p. 203) – a mensagem implícita é “Talvez a próxima dificuldade (ou rodada, ou encontro) seja a overdose – e daí? Quem se incomoda com isso?” (MCDOUGALL, 2001, p. 203).
Para McDougall, o objeto adictivo é “escolhido” de acordo com o período de desenvolvimento em que houve “o fracasso na integração dos objetos internos que ajudam e cuidam” (MCDOUGALL, 2001, p. 203). Além disso, revela o “estado ideal” buscado pelo indivíduo (potência, exaltação, ausência de dor, nirvana, etc.), o que faz com que seja inútil sugerir ao adicto a troca do objeto eleito por outro que cause menos mal. Por outro lado, os resultados obtidos por grupos de ajuda mútua (como os Alcoólicos Anônimos, p. ex.) poderiam ser explicados pela criação, nesses grupos, de um “novo ambiente familiar, com um cuidado materno mais adequado do que aquele que esteve disponível no passado” (MCDOUGALL, 2001, p. 202).
Conclusão: um modelo geral e outras possíveis aplicações
A partir das contribuições apresentadas acima, podemos tentar a construção de um modelo geral que nos permita analisar a questão da toxicomania a partir de um enfoque relacional:
1) A falta de um objeto interno bom e forte leva a uma fragilidade do ego do indivíduo, que o torna incapaz de lidar com as frustrações e ansiedades, fazendo com que as tensões psíquicas (originadas do ambiente ou do mundo interno) sejam sentidas como insuportáveis. O indivíduo, então, busca utilizar drogas (objetos externos) cujo efeito farmacotóxico possibilite um alívio (temporário) dessas tensões, dissipando os sentimentos que dão origem às tensões psíquicas. A impossibilidade de um objeto externo suprir consistentemente uma falha no mundo interno leva ao uso compulsivo da droga pelo adicto.
2) A origem desse objeto interno falho é buscada no modo como ocorreram as interações mãe-bebê na infância do indivíduo, seja por uma ausência da mãe, seja por uma “presença excessiva” da mãe (atitude fusional com relação ao bebê):
(a) Uma mãe ausente ou “desvitalizada” (deprimida) por um período de tempo sentido pelo bebê como muito longo causa nesse bebê uma experiência de “ruptura na continuidade da vida”, de forma que o objeto interno (representação interna da figura materna) deixe de ter sentido para ele, “morra” – e esse objeto interno “morto” passa a apresentar características persecutórias. Frente a essa ameaça, a criança adota, como forma de expressar sua insegurança, um uso exagerado do objeto transicional (que simboliza sua união com a mãe). Com o passar do tempo, mantida a mesma situação na interação com a mãe, o objeto transicional também perde o sentido e se transforma num “objeto perigoso”, que precisa ser dominado: o quadro evolui para uma perversão (o objeto passa a simbolizar a negação da separação). A falta de uma presença consistente da mãe também impede o desenvolvimento na criança da “capacidade para estar só” – e, consequentemente, da confiança no ambiente (mundo externo) e da autossuficiência para viver.
(b) Por outro lado, devido às próprias angústias, aos temores e aos desejos inconscientes, a mãe pode “usar” o bebê para suprir suas necessidades não satisfeitas, prolongando excessivamente uma atitude fusional com o bebê, que deveria ocorrer apenas nas primeiras semanas de vida deste – essa mãe fica, em certo sentido, num estado de dependência em relação ao seu bebê. Por sua vez, o bebê passa a sentir a interação com a mãe como patológica e persecutória, o que gera nele um medo de desenvolver seus próprios recursos psíquicos para lidar com as tensões e uma inibição da motilidade, da vivacidade emocional e da erogeneidade corporal. Como o objeto materno interior é falho, o bebê não consegue desenvolver sua “capacidade para estar só”, tem sua autoimagem avariada e estabelece um “relacionamento adictivo” com a presença da mãe e seus cuidados, buscando constantemente a mãe para lidar com quaisquer experiências afetivas, motivadas por causas internas ou externas. Posteriormente, o indivíduo irá buscar em objetos externos (“solução adictiva”) uma tentativa de cura de si mesmo frente a estados psíquicos ameaçadores.
Seguindo a ideia de McDougall de que todas as pessoas podem, por vezes, adotar comportamentos adictivos para fugir de situações afetivas dolorosas, podemos pensar que o modelo acima pode ser utilizado com proveito para a análise de outros problemas importantes da contemporaneidade – não apenas os tradicionalmente considerados como patologias (jogo compulsivo, adicção ao sexo, etc.), mas também as chamadas “novas dependências” (da Internet, do celular, dos video games, das compras no shopping center, etc.), largamente difundidas na sociedade e que afetam os indivíduos em graus variados.
No caso do consumo excessivo, por exemplo, é notório o alto índice de endividamento das famílias na atualidade, que se converte num grave problema social – a análise da questão com base no modelo proposto poderia auxiliar no seu entendimento: o objeto do consumo pode estar funcionando como “objeto adictivo”, cuja posse irá proporcionar a “felicidade” (até o lançamento de um novo modelo mais moderno, ou a próxima promoção da loja).
De qualquer forma, reiteramos o que já foi dito na introdução deste artigo: essa maneira de abordar os problemas, privilegiando o ponto de vista relacional, não exclui a importância de outras contribuições fundamentadas numa perspectiva pulsional; ao contrário, o que se deve buscar, na medida do possível, é uma complementaridade entre as abordagens, com o intuito de tentar entender de forma cada vez mais abrangente os diversos aspectos envolvidos em questões tão complexas como a toxicomania e os outros problemas que afligem o ser humano na atualidade.
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Fonte: Revista de Estudos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 42, dez. 2014.
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