Juntos Seria Sempre Melhor? Contardo Calligaris

O psicanalista Contardo Calligaris fala sobre solidão e neuroses atuais: "Jovem brasileiro é superprotegido" 

“O que lhe faz pensar que viver juntos seria bom? Nós temos uma ideia quase preconceituosa de que o fato de convivermos, estarmos juntos fisicamente ou não, seja bom. Eu não sei se é”, questiona.

Nascido em Milão, na Itália, Calligaris vive em São Paulo desde 2005, principalmente por causa das amizades que fez: “Meus melhores amigos são brasileiros e as amizades, para mim, estão acima dos laços de sangue. Os amigos, eu escolhi; os parentes, não”, diz. Calligaris é doutor em psicologia clínica e em 1975 foi aceito como membro da Escola Freudiana de Paris. Teve aulas com os filósofos franceses Roland Barthes (1915-1980) e Michel Foucault (1926-1984) e acompanhou seminários de Jaques Lacan (1901-1981). 

Em suas colunas jornalisticas, o psicanalista fala sobre temas como felicidade, adolescência e solidão, assuntos sobre os quais fala também nesta entrevista. 

O senhor já afirmou que a felicidade é uma “ilusão mercadológica”. Por quê?
Há certo exagero em afirmar isso, mas a felicidade, como aparece no discurso contemporâneo, é mais ou menos isso. Não sou contra essa ideia e, quando digo isso, não é uma crítica. A nossa sociedade é construída ao redor da insatisfação humana. É indispensável que estejamos sempre insatisfeitos, caso contrário não teríamos um nível mínimo de consumo para a sociedade sobreviver.

Certamente, você tem em seu armário calças e camisas suficientes para o resto de sua vida e poderia até dá-las a seus filhos, mas eles certamente não vão querer. Veja a quantidade de coisa inútil que nós temos em casa. Não falo, claro, por exemplo, de uma coleção de gravuras do século XVIII que alguém tenha, porque isso é uma paixão. Manter a insatisfação e manter o sonho de uma felicidade possível é parte das necessidades sociais.

O ideal de felicidade, portanto, está relacionado às necessidades de consumo?
Muita coisa que sustenta a ideia de felicidade não tem nada a ver com consumo. Por exemplo, a publicidade instituiu a ideia de que a felicidade corresponde à imagem de uma família feliz, embora hoje ninguém mais acredite naquela visão ordeira do café da manhã.

Naquele caso, a ideia de felicidade não está relacionada diretamente ao consumo, afinal  a escolha da margarina não implica gastar horrores. Mas a propaganda vende o ideal de que existe a felicidade sustentada pela ideia da reprodução humana. Sabemos, no entanto, que metade das vidas conjugais é  infernal. Algumas até se eternizam, mas a custo de um purgatório para todos.

O objetivo da psicanálise é fazer as pessoas felizes? 
Psicanálise não ajuda ninguém a ser feliz. Freud dizia que a psicanálise promove certa diminuição das infelicidades desnecessárias. Devemos evitar ser infelizes por razões que não valem a pena. Ao contrário dos outros animais, o ser humano leva anos pra ficar em pé, pra fazer comida e é vítima de uma conjuntura de afetos oferecidos pela família que outras espécies não têm.

E isso oferece um custo pelo qual pagamos por toda a vida, que é a neurose, que constitui parte de nossa infelicidade. Mas há uma fórmula infalível para ser feliz: duas doses diárias de heroína. Essa é a verdadeira fórmula da felicidade: heroína injetável (risos).

O senhor acredita que há um abuso de antidepressivos?
Há, sim, um excesso de antidepressivos e uma prescrição geralmente errada. Antidepressivo não é para quem está se sentindo triste, mas para quem tem um transtorno que é a depressão clínica e isso não tem a ver com a frequência da tristeza. Prescrever medicamento para uma tristeza, para uma melancolia, não faz sentido.

Mas isso aconteceu porque houve uma propaganda extraordinária desses remédios, que são muito rentáveis. E seu uso se vulgarizarou ainda mais após o surgimento dos genéricos. O placebo (substância farmacologicamente neutra administrada a um paciente pelo seu possível efeito psicológico) funciona em 16% a 17% dos casos e o antidepressivo, em mais ou menos 33%. Então, não é errado pensar que funcionam. A psicoterapia cognitiva comportamental junto com antidepressivo consegue resolver mais ou menos 65% dos casos.

Esse excesso do uso de antidepressivos está relacionado aos interesses da indústria farmacêutica?
Sem dúvida, há um grande interesse das companhias farmacêuticas no uso dos antidepressivos, mas há casos em que são mesmo necessários. Soube há pouco tempo, por uma revista especializada, de um novo medicamento para pessoas que tenham transtorno de estresse pós-traumático.

Imagine que após uma tragédia como o Furacão Katrina, você toma isso e, uma semana depois, evita a consolidação de algumas memórias que podem resultar em traumas. Numa situação de catástrofe, é importante para evitar que populações sonhem com aqueles horrores por muitos anos. Mas, por exemplo, se você teve um acidente de carro sem mortes ou se o seu gato morreu, as indústrias talvez queiram receitá-lo.

Durante um período, no século XIX, no Romantismo, o remédio para tristeza não teria demanda, porque tristeza estava na moda. Ninguém iria propor isso a Baudelaire, pois ele não queria se curar da tristeza. Naquela época, se cultivava a melancolia. E confesso que tenho certa simpatia por ela.

Especialistas dizem que o jovem brasileiro é superprotegido pela família. O senhor concorda?
No que diz respeito à hiperproteção, o Brasil é top de linha,  porque aqui há a desculpa da que a vida é perigosa além da conta. Os brasileiros têm razões concretas que o diferenciam dos EUA e da Europa. As crianças também sofrem o mesmo e não têm tempo de solidão. Isso é um problema, pois há uma preocupação de sempre mantê-la ocupada.

Mas ela poderia ficar sentada, sem fazer nada, pensando na vida. E falo da vida interior, mas não de grandes questões filosóficas. Precisam ter tempo de fantasiar, ou de ter as primeiras fantasias sexuais, se masturbar. Os pais precisam lembrar que, por mais que protejam os filhos, eles terão acessos à internet e os pais jamais irão controlar completamente. É difícil encontrar uma menina que não fique sozinha e tenha pelo menos algum tempo para se mostrar nua pela internet para homens do outro lado do mundo.

Que consequência o abuso da tecnologia poderá trazer para os jovens de hoje?
Lamento algumas formas de educação de hiperproteção, mas nós somos conservadores e todos acham que a melhor forma de educação foi a que nós recebemos ou a que os nossos pais receberam. Meu modelo de educação é outro, mas preciso reconhecer que as mudanças tecnológicas produzem mudanças comportamentais substanciais e não acho que seja uma catástrofe.

Conheci o microcomputador e a chegada dele na classe média. Fundei, na época, com outros psicanalistas, um grupo que investigava efeitos que eventualmente o uso do computador produziria na criança. Na época, fizemos entrevistas com uma pessoa que na França era o decano da psiquiatria infantil, mas cujo nome prefiro não revelar.

Juro de pés juntos que ele dizia que aquilo era o fim do mundo e que aquelas crianças seriam esquizofrênicas aos 14 anos. E ele não falava em esquizofrenia como metáfora. Mas a gente sabe hoje que não houve aumento de esquizofrenia por causa do uso de computadores.

Estatísticas mostram que a desigualde econômica no Brasil tem diminuído, mas a violência, em contramão, aumenta. Há alguma relação entre violência e condições econômicas?
Fui pesquisador de violência do Instituto de Violência da USP e tive acesso a estudos que mostravam que variações de renda não têm efeito direto na violência. O buraco é mais embaixo, com certeza. Há outros fatores muito mais importantes que contribuem para a violência, como o pouco policiamento, a falta de repressão e a impunidade.

Tem muita gente presa que não devia estar lá e muita gente solta que devia estar lá. Apesar de o país ter diminuído a desigualdade entre as classes, é necessário se diminuir a sensação de exclusão. Para as classes D e E, não importa apenas comer arroz ou frango. É preciso que elas não se sintam dispensáveis socialmente.

Fonte: http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/contardo-calligaris-fal-sobre-solidao-e-neuroses-atuais-no-tca-jovem-brasileiro-e-superprotegido/?cHash=d748a99e2976b6279a5db2b639083ca6

 

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