Quem cuida da saúde mental infantil
As políticas públicas voltadas para a infância têm uma história muito recente
Por Nilson Sibemberg
O Brasil, apesar das queixas e críticas, ora legítimas, ora infundadas, possui um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, o SUS. Sistema Único de Saúde que se propõe a oferecer à população brasileira atenção integral à saúde com acesso universal. Isto significa que qualquer cidadão, independentemente de sua renda e condição social tem o direito, garantido pelo Estado, de usufruir da atenção à sua saúde. A saúde como direito do cidadão e dever do Estado, garantido na Constituição Federal de 1988, abriu caminho para que movimentos sociais pudessem se mobilizar, demandando dos governos federal, estaduais e municipais políticas específicas para os problemas que os afligem. Organizações de pais de crianças com as mais diversas dificuldades de saúde mental têm buscado junto ao Ministério da Saúde a extensão de direitos sociais e acesso a atendimento especializado para seus filhos. Para melhor compreender este processo é importante, entre outros aspectos, conhecer a história das políticas públicas de saúde mental para a infância em nosso país.
A saúde mental da infância na esfera das políticas públicas de saúde tem uma história muito recente. Podemos tomar como marco a III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, quando, pela primeira vez, o campo da reforma psiquiátrica brasileira assumiu publicamente o atraso no enfrentamento da saúde pública com o sofrimento psíquico na infância. Até então, quem vinha se ocupando das questões específicas desta parcela da população brasileira era o campo da educação e da assistência social, com forte tendência à institucionalização das crianças e adolescentes e com uma expressiva presença de entidades filantrópicas na gestão destas ações. O relatório final da III Conferência indicou que a construção de uma rede de atenção à saúde mental infantil começaria pela criação dos Centros de Atenção Psicossocial para a infância, os CAPSi.
Assim como em outros sistemas de saúde mental de países industrializados, a especificidade da infância ficou à margem na construção de políticas públicas de saúde mental, sendo que as ações destinadas a crianças eram tomadas como mera extensão das políticas pensadas para a população adulta. Segundo Maria Cristina Ventura Couto, na América Latina e no Caribe somente 10 estudos populacionais sobre saúde mental na infância foram publicados no ano de 2003, reportando uma prevalência de problemas mentais nesta faixa da população entre 15 e 21%. No Brasil, entre 1980 e 2006, somente 9 trabalhos foram publicados, registrando taxas de prevalência entre 12,6 e 35,2%, quando os informantes eram os pais ou a criança, ou entre 7 e 12,7%, quando foram utilizadas entrevistas diagnósticas estruturadas. Isto significa dizer que, para uma expressiva parcela da população brasileira, faltam estudos epidemiológicos suficientes no campo da saúde pública que possam ajudar a dimensionar as consequências do sofrimento psíquico das crianças e também de suas famílias, assim como avaliar a eficácia e efetividade das ações que vêm sendo tomadas na esfera pública.
Ainda que essa história tenha pouco mais de uma década, podemos notar importantes avanços na comparação com o paradigma do século passado. A reforma psiquiátrica no Brasil assumiu um caráter contra a institucionalização manicomial como forma preponderante de atenção aos sujeitos em sofrimento psíquico. O tratamento psiquiátrico era centrado na internação em grandes hospitais psiquiátricos onde inúmeras pessoas chegaram a passar muitos anos de suas vidas, apartados do convívio social. No século XX essa tendência também se deu no campo da infância, com início de declínio dos programas de institucionalização principalmente nos anos 90, por conta dos debates em torno da inclusão escolar. A escola especial começava a deixar de ser o destino único para crianças portadoras de deficiência intelectual e problemas psíquicos graves como autismo e psicose infantil. Instituições como a antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), no Rio Grande do Sul, também começaram a ter seu paradigma questionado. A equivalência entre pobreza, deficiência moral e delinquência, a confusão entre deficiência mental e patologias mentais graves e seu tratamento por medidas reeducativas em instituições fechadas mostrou, além de seu fracasso, efeitos adversos muito significativos, como o aumento da situação de violência entre os adolescentes e a cronificação de patologias psíquicas nas crianças institucionalizadas. No entanto, a discussão passava ainda pelo lado da educação e da assistência social, sendo que a saúde só comparecia quando demandada ao atendimento individual de alguma criança que apresentasse sintomas. Portanto o campo da saúde estava omisso no que se refere ao planejamento de ações públicas no cuidado da saúde mental de nossas crianças.
Em 2002 o Ministério da Saúde editou portaria normatizando a criação dos CAPSi, Centro de atenção psicossocial dedicado ao atendimento da infância e adolescência, atendendo até a faixa etária de 17 anos. O CAPSi, composto por uma equipe multiprofissional, foi criado como equipamento especializado no atendimento à saúde mental infanto-juvenil. Sua presença deve se dar para municípios acima de 200.000 habitantes. Este serviço, estabelecido para dar cobertura de atendimento a um determinado território na cidade, não tem como missão apenas a prestação assistencial. Foi criado como instância aglutinadora de uma rede intersetorial de atenção à infância, envolvendo o serviço social, a educação, a cultura e a justiça, que já promovem ações específicas, cada qual na sua área. Cabe ao CAPSi promover a tessitura de fios que integrem tais ações na direção da constituição de uma rede de cuidados para com a infância. O mesmo deve acontecer dentro do campo especifico da saúde, onde este equipamento constitui o polo aglutinador das políticas de saúde mental dirigidas à infância envolvendo os serviços básicos de saúde, os hospitais, as emergências, envolvendo especialidades médicas como a neuropediatria, a genética, o acompanhamento de gestantes, a pediatria, entre outras. Ou seja, uma equipe multiprofissional que se dispõe a trabalhar de forma interdisciplinar entre seus membros e também compondo rede com outros setores da saúde que prestam atenção à saúde da criança.
Em 2004 o governo federal editou a portaria GM 1608, criando o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-juvenil. O Fórum constitui um espaço de encontro e debate sobre a infância e adolescência composto por diferentes setores do governo e sociedade civil, devendo configurar um espaço interdisciplinar de discussão e de articulação intersetorial.
No ano 2005 foi lançado o documento intitulado “Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil” apresentando diretrizes do ministério para a implementação de ações por parte de governos estaduais e municipais. Oito anos depois foram finalizados documentos de dois grupos de trabalho envolvendo a política de atenção àqueles que fazem parte do espectro autista, “Linhas de cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro autista” e “Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com espectro autista”. O primeiro documento preconiza a pluralidade de referências teórico-clínicas no atendimento, sublinhando a importância dos CAPSi na articulação de uma rede de atenção psicossocial. O tipo de tratamento e o equipamento necessário para desenvolvê-lo dependem da singularidade de cada caso, podendo se dar inclusive em um Centro de reabilitação para deficientes. No que diz respeito ao autismo, uma síndrome de causas multifatoriais com diferentes expressões clínicas a partir do conceito de espectro autista, este posicionamento é muito importante. O trabalho de intervenção precoce com bebês precisa ser sublinhado como ação inovadora no âmbito da saúde publica, marcando espaço de prevenção primária e secundária que possa atuar com bebês em situação de risco no desenvolvimento e na estruturação psíquica, possibilitando desde a não inscrição definitiva da patologia até a minimização das consequências psicossociais do problema vivido pela criança. No segundo documento o atendimento de pessoas com autismo fica possibilitado em um paralelo com a deficiência intelectual para ser tratado em Centros de Reabilitação específicos para portadores de deficiência intelectual, incluindo as pessoas com espectro autista. Outros centros de reabilitação se destinam ao tratamento de pessoas com diferentes deficiências, físicas, auditivas e visuais. Ainda em 2013 foi publicado outro documento, “Atenção psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: tecendo redes para garantir seus direitos”, enfatizando a importância do trabalho em rede intersetorial envolvendo as áreas da saúde, da educação, da cultura, do serviço social e da justiça. Outros documentos também foram apresentados desde então colocando diretrizes no atendimento de populações específicas, como, por exemplo, a dos portadores da Síndrome de Down.
As diretrizes das políticas públicas de atenção à saúde mental infantil sofreram grandes mudanças na passagem do século XX para o XXI, porém a implementação dos equipamentos e das equipes qualificadas para o exercício clínico delas depende não somente das diretrizes do Ministério da Saúde, mas da articulação com governos estaduais e municipais. A gestão do Sistema Único de Saúde é descentralizada. Por isso observamos uma disparidade regional importante no número de CAPSi implantados no território nacional. Pode-se dizer também que o número total destes serviços ainda é insuficiente para dar conta da demanda de problemas psíquicos que afetam a infância.
Da III Conferência Nacional de Saúde Mental até os dias atuais se passaram 14 anos. Tempo pequeno para consolidar uma rede de atenção psicossocial no extenso território brasileiro, mas suficiente para que seja avaliado o desenvolvimento de sua implantação. Sabemos que este processo não depende exclusivamente do governo federal, que Estados da federação e municípios tem grande responsabilidade na execução de tais políticas. Também a sociedade civil está implicada na passagem do paradigma reeducativo para um inclusivo e do paradigma institucionalizante para a produção de um tratamento em rede psicossocial indicando a mudança nas referências que marcaram a atenção psicossocial da infância no século passado para uma nova posição onde a saúde possa promover ações em rede com outros setores como a educação, a cultura, o serviço social e a justiça na direção do reconhecimento da especificidade dos cuidados que este período da vida requer no que diz respeito aos direitos sociais e as condições para o desenvolvimento e estruturação subjetiva.
O sofrimento psíquico do sujeito na infância tem características próprias que fazem com que a simples extensão do modo de pensar a atenção psicossocial para a população adulta seja não só insuficiente para dar conta dele, mas iatrogênico, produtor de mais mal estar em nossas crianças. A tensão produzida no embate de posições de associações de pais, de profissionais da saúde, da educação, do serviço social, da justiça, de instâncias governamentais será a responsável pelo andar desta carruagem, ou será que vamos ter de esperar que as melancias se ajeitem por conta no ritmo da carroça?
COUTO, Maria Cristina Ventura, DARTE, Cristina S, DELGADO, Pedro Gabriel G. A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira: situação atual e desafios. Rev Bras Psiquiatr. 2008; 30(4): 390-8
Fonte: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/crianca-em-desenvolvimento/quem-cuida-da-saude-mental-infantil/