Grada Kilomba: racismo, feminismo e herança colonial
Por Helder Ferreira Quem pode falar? Sobre o que é que se pode falar? Grada Kilomba usa essas duas questões como ponto de partida para sua palestra-performance intitulada Descolonizando o conhecimento, em que mistura literatura, vídeo e performance para abordar conceitos de raça, gênero e cognição. Para ela, que esteve em São Paulo em março último para apresentar o trabalho na Mostra Internacional de Teatro (MITsp) e participar de bate-papo em evento no Instituto Goethe, o caminho para a descolonização passa pela produção alternativa de saberes e a abertura de espaços para as diversas vozes das minorias. Nascida em Portugal, com ascendência são-tomense e angolana, Kilomba é escritora, ensaísta e artista interdisciplinar, doutora em Psicologia Clínica e Psicanálise pela Freie Universität, na Alemanha. Não é à toa, então, que o trauma seja um tema frequentemente explorado em seu trabalho, a exemplo de Plantation memories (Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano), livro que reúne relatos reais sobre o racismo presente na sociedade europeia e que foi, posteriormente, adaptado para o teatro pela própria autora. Na entrevista que segue, a curadora do Teatro Maxim Gorki, em Berlim, e ex-professora-convidada de Estudos de Gênero e Estudos Pós-Coloniais, na Universidade de Humboldt, também na capital alemã, fala sobre racismo, feminismo e herança colonial. CULT – O que significa “descolonizar o conhecimento” e por que isto é importante? Grada Kilomba – Descolonizar o conhecimento é encontrar e explorar formas alternativas e emancipatórias para sua produção, que estejam fora dos parâmetros clássicos. Então já começa com os formatos. Considero muito importante criar um espaço híbrido em que o acadêmico e o artístico se dissolvam. A interdisciplinaridade é um modo de descolonizar e transgredir as formas clássicas de conhecimento, porque penso que é o que os discursos atuais mais futuristas fazem, como os estudos transgêneros, queer e pós-coloniais. Acho que todos esses cursos se cruzam no meu trabalho. Também tem a ver com dar voz a outras narrativas que não a branca e europeia? Exatamente. Trabalho com dois conceitos fundamentais: a interdisciplinaridade e as configurações de poder. As últimas devem ser repensadas para abrir espaços para outras biografias, pessoas, vozes, perspectivas… Isso automaticamente traz um conhecimento emancipador e alternativo. Por exemplo, foi muito interessante essa minha primeira apresentação de aula-performance no Brasil: a sala estava cheia e nunca tive uma audiência tão silenciosa, que digeria tudo a que assistia. Não houve reações durante a apresentação – risos, como acontece na Europa, aplausos. É uma outra interação. Eu acho que foi a primeira vez que essas pessoas ouviram algo assim, nesse formato. E isso mostra que chegamos para ocupar novos espaços, novas maneiras de transmitir conhecimento. Está relacionado ao modo como o Brasil lida com o racismo? No caso, negando, acreditando no mito da democracia racial… Exatamente. Tenho apresentado esse trabalho em todo o norte da Europa, da Suécia e Noruega até Holanda e Bélgica. De Bruxelas para baixo, não desce; chega à França e o trabalho não desce. Nos países do sul, acho que esse tipo de trabalho ainda não escoou e muito menos ainda para o outro lado do Atlântico até o Brasil. É um discurso relativamente novo, mas no norte da Europa, ele já está acontecendo há algum tempo. A história colonial tem sido muito negada no mundo ocidental, mas se trata também de um processo. E não é um processo moral. É muito importante lembrar que racismo, no meu entender, não tem a ver com moralidade, tem a ver com responsabilidade. É um processo psicológico que começa com a absoluta negação. E depois passa à culpa – “sim, mas não fui eu, são vocês” – também está muito ligado à descrença – “não acredito, não foi assim, foi de outra maneira” –, depois se transforma em vergonha. A vergonha é um processo muito construtivo porque é o momento em que as pessoas se repensam e começam a reparar que, talvez, a forma como elas se veem não é a forma como os que estão na marginalidade as veem; que, talvez, sejam imagens diferentes. E começam, então, a construir um quebra-cabeça com essas várias peças. Talvez percebam que elas representam o poder, a opressão, e daí se perguntem: “Como eu começarei a desconstruir isso?”. Esse é o processo da vergonha – de reflexão, muito construtivo, que leva à outra etapa, que é a do reconhecimento. Descobrem-se vários conhecimentos, várias vozes e criam-se vários quebra-cabeças. Estabelece-se uma agenda mais diversificada, com a inclusão de mais artistas e outras perspectivas. Isso leva à reparação, não a uma reparação financeira, mas a uma que dá espaço a mais vozes. Acho que é esse o processo, e nós do sul estamos sempre entre a negação e a culpa, a culpa e a negação – dançamos entre as duas. Nos países do norte, especialmente na Alemanha – talvez por causa da guerra, do nacional-socialismo – houve um processo mais intenso e mais obrigatório, e acho que por isso eles dançam entre a culpa e a vergonha. Às vezes, chegam ao reconhecimento e voltam atrás. Mas lá já é possível apresentar esses trabalhos com uma outra dimensão. O silêncio da plateia brasileira não é o de quem se reconhece no que está sendo dito e sente vergonha? Mesmo quando é vergonha, vejo o processo como muito empoderador para todos nós. Seja quais forem nossas biografias, como pessoas negras ou brancas, é maravilhoso falar sobre responsabilidade e transformação. Por ser algo muito forte, provoca mais motivação e inspiração do que vergonha. Esse é o ponto que me interessa: reconhecer a história, reconhecer o padrão e depois encontrar formas construtivas de transformação. Acho que essa é uma tarefa de todos nós, global. Você diz que o racismo é um problema branco. Por quê? Porque racismo é preconceito e poder. É poder histórico, jurídico, institucional e estrutural que pertence à população branca. Tem a ver com o poder de representação. Quem é que tem acesso a? Quem é que pode entrar em? Quem é que está representado em? Está relacionado ao poder histórico contínuo, ligado, por sua vez, à história europeia branca. Portanto, racismo tem a ver não só com preconceito, mas também com a prática do preconceito, que só pode ser exercitada através do poder – é um problema branco neste sentido. O racismo sempre foi parte central de toda a política europeia, desde o início com o projeto europeu de escravatura, continuado com o projeto europeu de colonização e agora com a imagem de uma Europa fechada em que ninguém pode entrar. É um privilégio imenso que vem desse poder histórico. Isto é o que é racismo. Portanto, quando se fala do racismo inverso, se fala de um mito. Nós temos que conhecer as definições corretas para saber desmistificar, saber que o racismo é uma reencenação da história colonial. E você identifica tal herança colonial aqui no Brasil? Sim. Vejo aqui uma arquitetura e uma estrutura demográfica que me fazem lembrar a África do Sul do tempo do apartheid. Quando vim ao Rio pela primeira vez, era muito jovem e cheguei sozinha de Paris. Eu era a única menina negra no avião. Assim que pousei, havia quatro policiais à minha espera – uma mulher e três homens – que já tinham meu nome e queriam checar se o meu passaporte era, de fato, europeu. Eles me levaram para uma cabine à parte e me revistaram. Tive que me despir de algumas de minhas roupas e deixá-los apalpar o meu cabelo para checar se havia algo escondido. Isso é uma história muito violenta e que não conheço. No dia seguinte, fui visitar uma amiga que morava em um prédio no Rio. Percebi que a arquitetura era toda colonial: havia um empregado que recebia, conferia quem você é, abria a porta. E, depois de eu ter sido identificada, ele disse: “Pode entrar. Por favor, vá pela porta dos fundos”. E eu não entendi o que ele estava dizendo porque nós não temos porta dos fundos na Europa. Então, é toda essa arquitetura, todo esse design da cidade – a periferia e o centro, o prédio, a casa, o jardim, a porta, quem pode passar e quem não pode – que representa e perpetua o passado colonial. O racismo é incluir no próprio design de uma cidade ou país esse sistema. Há dificuldade, aqui no Brasil, de reconhecer e problematizar isto. O racismo tem essa capacidade de normalizar a violência. Ele é como uma máquina muito sofisticada que está sempre se adaptando ao contemporâneo. Torna-se sempre uma norma. Por isso é tão importante analisar criticamente, por ser “normal” e fazer parte do cotidiano das pessoas. A mídia é dominada pela cultura branca e protagonizada majoritariamente por pessoas brancas. Quais são as consequências disso? A alienação, ou despersonalização, que tem duas dimensões: por um lado, vejo imagens que não me representam como mulher negra, que representam o imaginário branco do que é ser negra, mas não são imagens de quem sou. Portanto, tenho sempre que lidar com o que represento para o branco, o que é muito problemático. E, depois, sinto-me obrigada a olhar para mim através do outro, ou seja, olho para imagens minhas que olham para mim através de outro olhar – isto é a despersonalização. E acontece constantemente. Como é que a pessoa negra é representada? Com os aspectos que a sociedade branca reprimiu: a sexualidade e a agressividade. Esses dois aspectos foram muito reprimidos para criar uma identidade encantadora da branquitude. E todas essas questões que se relacionam com a agressividade e a sexualidade são projetadas nos outros. Portanto, o corpo negro vai representar aquilo que a sociedade branca não quer, ou seja, a criminalidade, o roubo, a prostituição, a violência… Tudo o que se relaciona com esses aspectos é depositado nos corpos marginais (isso também é abordado por outros movimentos, como o queer e outras minorias). Permite que a sociedade branca, heterossexual e patriarcal tenha uma imagem limpa de si própria – ou seja, tudo aquilo que não quero ser, é projetado e depositado nos outros. É algo que acontece também no mundo artístico: o ator gay e a atriz negra, por exemplo, têm um papel de depósito para toda a agressão e sexualidade que não podem ser vividos pelos atores brancos – que são limpos, equilibrados etc. Ainda mais importante é que, no movimento negro global, estamos criando um discurso muito forte e isso é o que mais me interessa, pois se trata de um discurso futurista que transgride todos os discursos habituais. Futurista como? Futurista por estar muito à frente do presente. Todos os grupos marginais estão sempre muito à frente. Se olharmos para trás e observarmos os discursos feminista, queer e negro, veremos que eles começaram há cinquenta anos e, mesmo agora, ainda soam futuristas e se cruzam com muitos outros movimentos mais recentes, como o critical whiteness, que está desmitificando e desmontando o que é branquitude. São discursos calcados no presente, mas que têm uma visão para além dele. E eu acho que o público quer esse discurso. Foi o que percebi, por exemplo, na minha plateia aqui. E como entra o recorte de gênero dentro do seu trabalho? Os estereótipos de gênero são sempre baseados em estereótipos raciais. O mito da mulher negra sexualizada, o mito da mulher muçulmana oprimida e o mito da mulher branca emancipada se cruzam sempre com os mitos e estereótipos raciais e de gênero, portanto, são elementos que não podemos separar. Sempre trabalho com todas essas categorias. O feminismo também tem sido muito discutido na mídia. Estampa capas de revistas e é mencionado por celebridades que, cada vez mais frequentemente, declaram-se feministas. O que você acha desse feminismo que alcançou o mainstream? É um feminismo abrangente? O feminismo é um movimento maravilhoso, mas excluiu muito a mulher não branca de todo o seu discurso. A mulher negra esteve muito ausente, como um tipo de vácuo entre discursos. Estamos entre o discurso de falta de representação, o discurso antirracista (que, muitas vezes, é muito masculino), o discurso feminista. Este último é um discurso branco: não inclui o racismo e as vivências da mulher negra, ignora quinhentos anos de história que fazem parte da constituição da mulher negra e de todas as mulheres das diásporas. Estamos também entre um discurso de classes que não inclui raça de forma nenhuma. Então, vivemos entre esses vários discursos dos quais fazemos parte, mas nos quais não estamos propriamente incluídas. Acho que o feminismo negro tem uma outra força e uma outra importância para além desses discursos. E o feminismo mainstream, de fato, falhou muito em não incluir a história colonial como parte da luta feminista. Ao fazer isso, excluiu mulheres das diásporas muçulmana, asiática, africana e indígena; excluiu a vivência de muitas mulheres. O feminismo convencional dividiu o mundo entre os homens e as mulheres. As mulheres negras disseram: “Isso é muito mais complexo. Nós temos que trabalhar com muitas outras categorias e interdisciplinarizar, porque o homem negro não tem acesso ao poder, e a mulher branca pode ser a minha opressora”. Portanto, as alianças são muito mais complexas do que o feminismo convencional criou. Houve, durante muito tempo, vários feminismos paralelos. Temos que começar a construir alianças entre esses diversos discursos. Acho que estamos no caminho. Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/grada-kilomba/?fbclid=IwAR3-Yt1dmijj01wEg25oGiLIPRXGT2YgSUrggJ_60iJ9CFJ0_ddyzuZBrxMGrada Kilomba: ‘O racismo está sempre se adaptando ao contemporâneo’