A pandemia, o racismo e a vida
por Jeane Saskya Campos Tavares A crise gerada pela pandemia se somou às crises anteriores, que tornaram o Brasil o país com maior número de casos registrados de ansiedade. Esse é o título de um artigo da escritora, cineasta e jornalista norte-americana Bridgett M. Davis, publicado originalmente em 1994. Um relato íntimo sobre as múltiplas perdas que envolvem a experiência de ser negro numa sociedade racista. A hiperexposição à morte, a impossibilidade de viver plenamente os processos de luto e a gravidade dos efeitos do racismo sobre nossa saúde nos unem a essa autora, a despeito do distanciamento temporal e social. Tomaremos o texto de Davis como condutor, mas nosso foco será a saúde da população negra brasileira, com especial atenção para o aumento do número de mortes e o recrudescimento da violência do Estado no contexto da pandemia de Covid-19 como agravantes do sofrimento gerado pelo racismo. Genocídio e o luto não autorizado “Na verdade, nunca me permiti viver meu luto, passar pela perda e ultrapassá-la. Até que a perda me engoliu […]” (Davis, 2006, p.104) As mortes físicas e simbólicas, a humilhação, o medo e o ódio têm feito parte da experiência de ser negro no Brasil desde o início do processo de mercantilização e extermínio de sequestrados africanos e seus descendentes, que chamamos de escravidão. Do colonialismo à colonialidade, são quatro séculos de mortes violentas, anônimas, espetacularizadas, por tortura, fome, exaustão e negligência. Séculos de trabalho excessivo e extenuante nas plantações, nas minas, nas construções, na limpeza das cidades, nos serviços domésticos. Um esforço brutal pela sobrevivência em troca de nada ou de muito pouco, que não enriquece nem deixa herança. Séculos de separações forçadas entre familiares pela venda dos corpos negros que, vivos na escravidão ou mortos nas bancadas dos cursos do campo da saúde, são identificados como “peças”. Rompimento de vínculos impostos pelas migrações em busca de trabalho ou pelo encarceramento sistemático em prisões e manicômios. A vulnerabilidade da saúde e a morte da população negra são geradas por decisões políticas, a exemplo da Emenda Constitucional n. 95/2016, que produz o desfinanciamento do SUS, do qual 80% dessa população depende exclusivamente. Por falta de apoio efetivo para o autocuidado, essa população desenvolve diabetes melito (mulheres negras 50% mais que brancas), tuberculose (57,5% dos casos), hipertensão essencial primária (27% mais entre pretos que entre brancos). Essas mesmas pessoas adoecidas não conseguem cumprir o isolamento social e protocolos de higienização para a prevenção da Covid-19, pois a maioria da população se encontra: encarcerada (61,7%), em situação de rua (67%), em trabalho informal (47,3%) ou executando serviços de baixa remuneração (75% dos que têm o rendimento mais baixo) e vivendo sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca). A exposição continuada e os quadros clínicos prévios elevam o risco de contaminação e morte por Covid-19 (54,8% dos que morreram nos hospitais) ou síndrome respiratória aguda (risco 2,5 vezes maior que entre brancos). Também são questões de política de saúde, agravada durante a pandemia, as altíssimas taxas e a desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, sobretudo por armas de fogo. Pessoas negras são as principais vítimas de homicídio (75,5%). Uma juventude perdida por assassinato e suicídio, principalmente para homens negros, que têm maior risco de cometer suicídio quando adolescentes (67%) e jovens (34%) que brancos. Em meio a esse processo continuado de negação de direitos, perdas e mortes, que Abdias Nascimento nomeia como genocídio do negro brasileiro, desenvolvemos nossas subjetividades (brancos e negros). Do ponto de vista da população negra, embora sejamos múltiplos e tenhamos diferentes experiências ao longo da vida, as repercussões do racismo produzem intenso sofrimento. Para nós, a crise gerada pela pandemia se somou às crises anteriores, que tornaram o Brasil o país com maior número de casos registrados de ansiedade, sendo a população negra a mais frequentemente diagnosticada com transtornos mentais. Apesar disso, temos menos acesso ao cuidado longitudinal na rede pública e quase nenhum acesso aos serviços privados, majoritariamente ocupados por profissionais brancos, reprodutores de sua branquitude, o que contribui para a patologização dos sujeitos e reafirma o racismo institucional. Num contexto hostil, numa sociedade que minimiza ou não reconhece o sofrimento gerado pelo racismo, aprendemos quanto vale a nossa vida. Fazemos constantemente o cálculo, nem sempre racional, das (im)possibilidades e do risco da morte física pela Covid-19, pela polícia, pelo tráfico, pelo parceiro íntimo, por suicídio, pela miséria. Esse cálculo, mediado pelo cruzamento de vários fatores – gênero, idade, religião, classe social, escolaridade, identidade de gênero, entre outros –, vai definir as reações emocionais e comportamentais possíveis diante do aumento do número de ações policiais durante a pandemia e das notícias diárias de assassinatos de crianças e adolescentes em territórios onde o Estado gerencia a barbárie. Essa intersecção orienta, ainda, como interpretamos os números de milhares de mortos pela Covid-19 e o desprezo abertamente declarado de políticos e empresários pela vida dos mais vulneráveis. O relato de Davis ilustra como o excesso de experiências de morte se relaciona com a evitação em entrar em luto ou de manifestá-lo abertamente. Há uma urgência em tornar-se insensível, pois o curto intervalo entre as mortes não permite a recuperação plena. É necessário manter-se firme, forte e vivo, ainda que isso implique não desfrutar plenamente de momentos de felicidade, nos quais as mortes não elaboradas lembram que não deveríamos estar felizes. Para pessoas negras, a entrega emocional pode não ser uma opção, pois tanto é preciso retornar às atividades de sobrevivência quanto se vive o medo da perda de controle e, por fim, de enlouquecer. Acrescento que, na dimensão coletiva, a dessensibilização para a morte tem importante função de manutenção do racismo estrutural. A naturalização da violência promovida pela humilhação dos sujeitos e pela exposição continuada dos cadáveres negros em programas de TV, a culpabilização e o estigma que sofrem os familiares das pessoas assassinadas por agentes de segurança ou mortos por Covid-19 são marcas da imposição social de não se viver o luto. “Eles” são os não humanos para quem os direitos não se aplicam e o luto não é socialmente autorizado. Entre covas rasas e memoriais “Mas sei que com certeza tenho uma missão, essa missão consiste em me fazer ouvir e em imortalizar aqueles que se foram e que tanto amei” (Davis, 2006, p.110) Do Cais do Valongo na escravidão ao Cemitério da Vila Formosa na Covid-19, passando pelo “Cemitério da Paz” do Hospital Colônia de Barbacena, este é um país que se ergueu e se mantém sobre covas rasas e valas coletivas onde corpos negros são descartados. O desprezo e o desvalor da vida negra no Brasil nos fazem sofrer, nos impedem de aprender a viver o luto coletivo e nos roubam o tempo necessário para vivermos os lutos individuais. Com as repetidas experiências de desamparo em meio à violência racial, aprendemos a não pedir ajuda e a não esperar apoio. Resistimos, sobrevivemos, avançamos, temos momentos de felicidade, mas não estamos bem. Penso que Tempo e aquilombamento são decisivos para o resgate de nossa saúde mental em relação aos processos de luto. O racismo altera radicalmente nossa percepção sobre o tempo. Além de vivermos menos, estamos presos a um eterno e perigoso presente colonial. O genocídio apaga corpos negros, mas também memórias da resistência, da cultura, da religião, da identidade, das contribuições para o desenvolvimento do Brasil. Simultaneamente, produz a desesperança e nos faz desistir de planejar o futuro. Em meio à matança, enquanto não alcançamos as mudanças estruturais necessárias, precisamos nos apoiar e insistir coletivamente em olhar para o passado e entender como nossos ancestrais nos trouxeram até aqui. Precisamos chorar nossos mortos e cumprir os lutos, construir memoriais, marcar a sua existência e, por fim, investir num futuro em que as próximas gerações rompam definitivamente com o racismo e a colonialidade. Sankofa! Jeane Saskya Campos Tavares é psicóloga, doutora em Saúde Pública (Instituto de Saúde Coletiva da UFBA) e docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Referências bibliográficas Bridgett M. Davis, “Falando da perda: hoje estou mal, espero que você entenda”. In: Jurema M. Werneck; Maisa Mendonça e Evelyn White (orgs.), O livro da saúde das mulheres negras. Nossos passos vêm de longe, Rio de Janeiro, Pallas/Criola, 2006. IBGE, Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Atlas da violência 2019, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Jenny Rose Smolen e Edna Maria de Araújo, “Raça/cor da pele e transtornos mentais no Brasil: uma revisão sistemática”, Ciência & Saúde Coletiva, v.22, n.12, p.4021-4030, 2017. Marizete Gouveia Damasceno e Valeska M. Loyola Zanello, “Saúde mental e racismo contra negros: produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos”, Psicologia: Ciência e Profissão, v.38, n.3, p.450-464, 2018. Ministério da Saúde, Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS, Brasília, 2017. Ministério da Saúde, Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016, Universidade de Brasília, 2018. OMS, Depression and Other Common Mental Disorders [Depressão e outros transtornos mentais comuns], Global Health Estimates, Genebra, 2017. Fonte: https://diplomatique.org.br/falando-da-perda-hoje-estou-mal-espero-que-voce-entenda/?fbclid=IwAR2uIVrdYf4o8C6ov_XnrdcJO0yS3p6uCBUlXPsj7rdjY4vkCc8kcas1kkk“Falando da perda: hoje estou mal, espero que você entenda”