Por um outro jeito de ser no mundo

 

 

Afropolitanismo

Por Achille Mbembe

Tradução de Cleber Daniel Lambert da Silva - Professor Adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonica Afro-Brasileira, Ceará, Brasil.

Quer se trate da literatura, da filosofia ou das artes, o discurso africano foi dominado, durante aproximadamente um século, por três paradigmas político-intelectuais que, de resto, não se excluíam mutuamente.

Houve, de uma parte, diversas variantes do nacionalismo anti-colonial. Este último exerceu uma profunda influência sobre as esferas da cultura, da política e do econômico, até mesmo do religioso. Mas também houve, de outra parte, diversas releituras do marxismo das quais resultaram, aqui, ali e acolá, várias figuras do “socialismo africano”. Veio, enfim, um movimento pan-africanista que concedeu um lugar privilegiado a dois tipos de solidariedade – uma solidariedade de tipo racial e transnacional e uma solidariedade de tipo internacionalista e de natureza anti-imperialista.

No limiar do século, pode-se dizer que esse mapa intelectual fundamentalmente não mudou, apesar de que, imperceptivelmente, importantes reconfigurações sociais e culturais estão em andamento. Esta distância entre a vida real das sociedades, de um lado, e as ferramentas intelectuais pelas quais as sociedades apreendem seu destino, de outro, implica riscos para o pensamento e para a cultura. Os três paradigmas político-intelectuais mencionados acima foram, com efeito, institucionalizados e se cristalizaram de tal maneira que eles não permitem mais, no presente, analisar com um mínimo de credibilidade as transformações que estão em curso. As instituições que os sustentam funcionam, quase sem exceção, como se fossem verdadeiras “rendas garantidas”. Ademais, elas bloqueiam toda forma de renovação da crítica cultural e da criatividade artística e filosófica, além de reduzir nossas capacidades de contribuir com a reflexão contemporânea sobre a cultura e a democracia.

A circulação dos mundos

De todas as reconfigurações que estão em curso, duas em particular correm o risco de influenciar singularmente sobre a vida cultural e a criatividade estética e política dos próximos anos. Primeiramente, há aquelas que tocam às novas respostas para a questão de saber “quem é Africano” e quem não o é.

Numerosos são, com efeito, aqueles aos olhos dos quais é “Africano” aquele que é “negro” e, portanto, “não-branco”, mensurando-se o grau de autenticidade, assim, a partir da escala da diferença racial bruta. Ora, ocorre então que todo tipo de pessoas possui alguma ligação, ou simplesmente, alguma coisa a ver com a África – alguma coisa que os autoriza esse fato a pretender a “cidadania africana”. Naturalmente, há aqueles que são nomeados Negros. Nasceram e vivem no interior dos Estados africanos dos quais eles constituem os cidadãos. Mas, se os Negro-Africanos formam a maioria da população do continente, eles não são nem os únicos habitantes, nem os únicos produtores da arte e da cultura.

Vindos da Ásia, da Arábia e da Europa, outros grupos de populações instalaram-se em diversas partes do continente em diversos períodos da história e por diversas razões. Alguns dentre eles chegaram enquanto conquistadores, mercadores ou zelotes, como é o caso dos Árabes e dos Europeus. Fugindo de toda forma de miséria, procurando escapar da perseguição, imbuídos simplesmente de esperança por uma vida pacífica ou ainda movidos pela sede de riquezas, outros se instalaram graças a circunstâncias históricas mais ou menos trágicas, a exemplo dos Africâneres e dos Judeus. Mão de obra essencialmente servil, outros ainda fincaram raízes no contexto de migrações em busca de trabalho, a exemplo dos Malaios, dos Indianos e dos Chineses na África austral. Mais recentemente, Libaneses, Sírios, Indo-Paquistaneses e, aqui e ali, surgiram algumas centenas ou milhares de Chineses. Todo esse mundo chegou com suas línguas, seus costumes, seus hábitos alimentares, suas modas indumentárias, suas maneiras de orar, enfim, seus modos de ser e de fazer. Hoje, as relações que essas diversas diásporas entretêm com suas sociedades de origem são as mais complexas possíveis. Muitos de seus membros consideram-se inteiramente africanos, ainda que, além disso, eles pertençam igualmente a um alhures.

Mas se a África constituiu, durante muito tempo, um lugar de destino de toda sorte de movimentos de população e de fluxos culturais, ela foi também, durante séculos, uma zona de partida rumo a numerosas regiões do mundo. Esse processo de dispersão, multissecular, desenvolveu-se na esteira daquilo que se designa geralmente como os Tempos modernos e tomou os três corredores que são o Saara, o Atlântico e o Oceano Índico. A formação de diásporas negras no Novo-Mundo, por exemplo, é o resultado dessa dispersão. A escravidão, da qual sabemos que ela não diz respeito apenas aos mundos euro-americanos, mas também aos mundos árabe-asiáticos, desempenha um papel decisivo nesse processo. Em razão dessa circulação dos mundos, os traços da África recobrem, de um extremo ao outro, a superfície do capitalismo e do Islã. Às migrações forçadas dos séculos anteriores somam-se outras cujo motor principal foi a colonização. Hoje, milhões de pessoas de origem africana são cidadãos de diversos países do globo.

Quando se trata da criatividade estética na África contemporânea, e mesmo da questão de saber quem é “Africano” e o que é “africano”, é esse fenômeno histórico da circulação dos mundos que a crítica política e cultural tende a ignorar.

Visto a partir da África, o fenômeno da circulação dos mundos possui ao menos duas faces: aquela da dispersão, que acabo de evocar, e aquela da imersão. Historicamente, a dispersão das populações e das culturas não foi somente o fenômeno de vinda de estrangeiros para se instalar em nossa casa. Na verdade, a história pré-colonial das sociedades africanas foi, de ponta a ponta, uma história de povos incessantemente em movimento através do conjunto do continente. Trata-se de uma história de culturas em colisão, tomadas pelo turbilhão das guerras, das invasões, das migrações, dos casamentos mistos, de religiões diversas que são apropriadas, de técnicas que são trocadas e de mercadorias que são vendidas. A história cultural do continente praticamente não pode ser compreendida fora do paradigma da itinerância, da mobilidade e do deslocamento.

Aliás, é essa cultura da mobilidade que a colonização procura, em sua época, fixar através da instituição moderna da fronteira. Rememorar essa história da itinerância e das mobilidades é a mesma coisa que falar das misturas, dos amálgamas, das superposições. Contra os fundamentalistas do “costume” e da “autoctonia”, pode-se chegar a afirmar que, no fundo, aquilo que designamos como “a tradição” não existe. Quer se trate do islã, do cristianismo, das maneiras de se vestir, de fazer negócio, de falar, mesmo dos hábitos alimentares - nada disso sobreviveu ao rolo compressor da mestiçagem e da vernacularização. Já era esse o caso muito antes da colonização. Com efeito, há uma modernidade africana pré-colonial que ainda não foi considerada pela criatividade contemporânea. 

O outro aspecto dessa circulação dos mundos é a imersão. Ela diz respeito, em diferentes graus, às minorias que, vindo de longe, acabaram por fincar raízes no continente. Com o passar do tempo, os vínculos com suas origens (européias ou asiáticas) complicaram-se singularmente. Em contato com a geografia, com o clima e com os homens, eles se tornaram bastardos culturais ainda que, por força da colonização, os Euro-Africanos, em particular, tenham continuado a almejar a supremacia em nome da raça, marcando sua diferença, mesmo seu desprezo, em relação a qualquer signo “africano” ou “indígena”. É o caso, em grande parte, dos Africâneres cujo próprio nome significa “os Africanos”. A mesma ambivalência pode ser observada entre os Indianos, mesmo entre os Libaneses e os Sírios. Por toda parte, a maioria se exprime em línguas locais, conhece, até mesmo pratica certos costumes da terra, mas vive em comunidades relativamente fechadas e pratica a endogamia.

Não é somente questão de afirmar que uma parte da história africana se encontra alhures, fora da África. Há, do mesmo modo, uma história do resto do mundo de que nós somos, pela força das coisas, os atores e os depositários, aqui mesmo no continente. Além disso, nossa maneira de ser no mundo, nossa maneira de “ser-mundo”, de habitar o mundo – tudo isso sempre se efetuou sob o signo da mestiçagem cultural ou pelo menos da imbricação dos mundos, numa lenta e, às vezes, incoerente dança dos signos, a qual não tivemos praticamente a autonomia de escolher livremente, mas que conseguimos, de uma maneira ou de outra, domesticar e fazer uso.

A consciência dessa imbricação do aqui e do alhures, a presença do alhures no aqui e vice-versa, essa relativização das raízes e dos pertencimentos primários e essa maneira de abraçar, com todo conhecimento de causa, o estranho, o estrangeiro e o distante, essa capacidade de reconhecer sua face no rosto do estrangeiro e de valorizar os traços do distante no próximo, de domesticar o in-familiar, de trabalhar com aquilo que possui aspecto de ser contrário por completo – é precisamente essa sensibilidade cultural, histórica e estética que o termo “afropolitanismo” indica.

O reflexo nativista

O segundo tipo de reconfigurações em andamento tem a ver com a escalada do reflexo nativista. Em sua versão benigna, o nativismo aparece sob a forma de uma ideologia que glorifica a diferença e a diversidade e que luta pela proteção dos costumes e das identidades consideradas como ameaçadas. Na lógica nativista, as identidades e as lutas políticas são declinadas a partir de uma distinção entre “aqueles que são daqui” (os autóctones) e “aqueles que vieram de outro lugar” (os alógenos). Os nativistas esquecem que, em suas formas estandardizadas, os costumes e as tradições que eles reivindicam foram freqüentemente inventados não pelos próprios indígenas, mas na verdade pelos missionários e pelos colonos.

Assim, ao longo da derradeira metade do século, viu-se o surgimento, quase por toda parte do continente, de uma forma de bio-racismo (autóctones contra alógenos) que se nutre politicamente através de certa forma de vitimização e de ressentimento. Como é freqüentemente o caso, a violência da vítima é raramente dirigida contra seu real algoz. Quase sempre, ela é exercida contra um algoz imaginário a quem ocorre, como por coincidência, ser sempre mais fraco, ou seja, trata-se de uma outra vítima - freqüentemente pessoas que não tem nada a ver com a ferida original. Pode-se ver em diversos países - e não somente na África - uma pulsão genocida habitar as ideologias da vitimização. Elas são criadoras da cultura do ódio da qual se constatou, e não somente em Ruanda, o incrível poder de destruição. O afropolitanismo não é o mesmo que o pan-africanismo ou a Negritude.

O afropolitanismo é uma estilística, uma estética e uma certa poética do mundo. É uma maneira de ser no mundo que recusa, por princípio, toda forma de identidade vitimizadora, o que não significa que ela não tenha consciência das injustiças e da violência que a lei do mundo infringiu a esse continente e a seus habitantes. É igualmente uma tomada de posição política e cultural em relação à nação, à raça e à questão da diferença em geral. Na medida em que nossos Estados são invenções (além do mais, recentes), eles não têm, estritamente falado, nada em sua essência que nos obrigaria a lhes render um culto - o que não significa que nós sejamos indiferentes ao seu destino.

Quanto ao “nacionalismo africano”, ele representa originalmente uma potente utopia cuja força insurrecional foi ilimitada - a tentação de nos compreendermos a nós mesmos dignamente, de nos mantermos em pé diante do mundo, simplesmente enquanto seres dotados de uma face humana. Mas, desde que o nacionalismo se converteu em ideologia oficial de um Estado que se tornou predador, ele perdeu todo núcleo ético - doravante um demônio que vaga na noite e foge da luz do dia. Essa questão da face humana e da figura humana é precisamente o obstáculo contra o qual o nacionalismo e o nativismo não cessam de se chocar. A partir do momento em que a África contemporânea desperta sob as figuras do múltiplo (inclusive o múltiplo racial) que são constitutivas de suas identidades, declinar o continente somente a partir do modo da solidariedade negra torna-se insustentável. Além disso, como não ver que esta pretensa solidariedade é profundamente danificada pelo modo como a violência do irmão contra o irmão, bem como a violência do irmão contra a mãe e as irmãs, é exercida desde o fim das colonizações diretas?

Seguir em frente

É preciso, portanto, seguir em frente se queremos reanimar a vida do espírito na África e, por conseqüência, as possibilidades de uma arte, de uma filosofia, de uma estética que possam dizer algo de novo e de significante ao mundo em geral. Hoje, numerosos africanos vivem fora da África. Outros escolheram livremente viver no Continente, não necessariamente nos países onde nasceram. Mais ainda, muitos dentre eles têm a sorte de ter feito a experiência de vários mundos e praticamente não cessaram de ir e vir, desenvolvendo, na esteira desses movimentos, uma incalculável riqueza do olhar e da sensibilidade. Trata-se geralmente de pessoas que podem se expressar em mais de uma língua.

Eles estão desenvolvendo, às vezes sem perceber, uma cultura transnacional que eu chamo de “Afropolitana”. Entre eles, encontram-se numerosos profissionais que, em suas atividades cotidianas devem se confrontar não com a cidade vizinha, mas com o mundo de modo amplo. Esse “espírito aberto” é percebido de maneira ainda mais profunda entre numerosos artistas, músicos e compositores, escritores, poetas, pintores - trabalhadores do espírito que faz vigília desde as profundezas da noite pós-colonial. Em outro plano, um número reduzido de metrópoles pode ser qualificado de “Afropolitana”. No oeste da África, Dakar e Abdijan desempenharam esse papel durante a segunda metade do século XX. A capital senegalesa constituía, então, o complemento cultural de Abdijan, cadinho regional dos negócios. Hoje, Abdijan infelizmente está corroída pelo câncer do nativismo. No leste da África, Nairóbi era o centro de negócios e a sede regional de várias instituições internacionais.

Contudo, o centro por excelência do afropolitanismo é, nos dias de hoje, Johanesburgo, na África do Sul. Nessa metrópole forjada no ferro de uma história brutal uma figura inédita da modernidade africana está se desenvolvendo. Trata-se de uma modernidade que tem pouco a ver com o que se conhecia até agora. Ela se nutre na fonte de múltiplas heranças raciais, de uma economia vibrante, de uma democracia liberal, de uma cultura do consumo que participa diretamente dos fluxos da globalização. Aqui está se criando uma ética da tolerância suscetível de reanimar a criatividade estética e cultural africana do mesmo modo que em outra época o Harlem ou Nova Orleans o fizeram nos Estados Unidos.

1 Artigo publicado originalmente no jornal Le Messager de Douala, Camarões, 20 dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2015. Áskesis | v. 4 | n. 2 | julho/dezembro - 2015| 68 - 71 69 

Fonte: https://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/74#:~:text=Quer%20se%20trate%20da%20literatura,variantes%20do%20nacionalismo%20anti%2Dcolonial.

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