A dororidade: a luta feminista pela dor - entrevista com Vilma Piedade
Entrevista com Vilma Piedade
Leia a entrevista com Vilma Piedade, autora o livro Dororidade, editado pela Editora Nós. Vilma é convidada do Primeiro Ciclo Blooks Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações, que acontece na Blooks de Botafogo, nesse mês de novembro. O ciclo inaugura uma homenagem ao mês da consciência negra e deseja ser espaço de diálogo e novos debates para uma reparação histórica com a população negra.
Como surgiu a criação do conceito Dororidade?
O Conceito Dororidade nasceu da minha inquietude frente à Sororidade , um conceito importante e que fundamenta o Feminismo, contudo não me sentia incluída, contemplada na totalidade. Sabemos que todo conceito é circular, não se basta em si mesmo, e nessa discussão, Dororidade contém a Sororidade, mas nem sempre o contrário acontece.
Vale ressaltar aqui, que um dos problemas do pensamento feminista foi perceber o movimento como um projeto único, moldado para a mulher branca, ocidental, de classe média, instruída. Uma visão mais relativista de feminismo é incorporada em 1980, na qual o movimento começa a pensar em questões relativas aos diferentes tipos de mulher, considerando aspectos culturais, sociais e, principalmente, étnicos. Em meu livro Conceito Dororidade [Editora NÓS, 2017], repondo a essa pergunta e deixo, nas minhas respostas, uma questão:
"…Mas, qual a finalidade, no nosso caso, de ter um novo conceito — Dororidade? Será que como Mulheres Feministas, Sororidade não nos basta? E Sororidade não é o conceito que ancora o Feminismo? O lugar de fala é um lugar de pertencimento. Falo desse lugar como Mulher Preta. Ativista. Feminista. De Axé. Mas também falo de um lugar das minhas Ancestrais, marcado pela ausência histórica. Lugar-ausência marcado pelo Racismo. E, é desse lugar digo que Não. Sororidade une, irmana, mas não basta. O que parece nos unir na Luta feminista é a dor. A dor da violência que sofremos no cotidiano. Seja física, emocional, patrimonial, moral. No nosso caso, ainda temos a violência racial. Dororidade quer falar das sombras. Da fala silenciada, dentro e fora de Nós. Da dor causada pelo Racismo. E essa Dor é Preta. Dororidade carrega, no seu significado, a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo. Contudo, quando se trata de Nós, Mulheres Pretas, tem um agravo nessa dor, agravo provocado pelo Racismo. Racismo que vem da criação Branca para manutenção de Poder… Aí entra a Raça. E entra Gênero. Entra Classe. Sai a Sororidade e entra Dororidade." (In; Dororidade, Vilma Piedade- todos os direitos reservados)
E sobre o Feminismo Negro?
Escrevo para tentar discutir o feminismo como escuta e diálogo… Porque é apostando no diálogo, na escuta, no feminismo dialógico interseccional que me coloco como Mulher Preta no Feminismo e assim estamos falando do Feminismo Negro..
Minha escrita, minha escuta, minha fala, trazem a marca das aberrações que o racismo nos imprime e nos empurra goela abaixo no cotidiano. Quando penso em diálogo, na construção de um feminismo inclusivo, mais preto, preciso recuperar nosso princípio filosófico. Ubuntu. Eu contenho o outro. Somos Um. Somos Uma. O famoso… pegou prá uma… pegou geral. Nosso princípio é circular como as Rodas de Xirê no Candomblé… minha tradição. E aí? Será que pode haver diálogo feminista e uma democracia feminista num país que vive ancorado no mito da democracia racial? Acredito que sim. É possível.
A democracia feminista pressupõe inserir mais mulheres nos espaços de poder. E nós, Mulheres Pretas, estamos nessa. E aí, não podemos esquecer Sueli Carneiro quando aponta (in:… Mulheres Negras e Poder; um Ensaio Sobre a Ausência) que “a relação entre mulher negra e poder é um tema praticamente inexistente. Falar dele é, então, como falar do ausente…”
Então, vamos ter que dialogar com essa ausência. Dororidade. E, ainda buscar respostas prá questão lançada por Djamila Ribeiro em Quem tem Medo do Feminismo Negro?
Dentro de uma perspectiva histórica, qual foi a participação das Mulheres Negras no Movimento Feminista Brasileiro?
Nós, Mulheres Negras, somos há séculos importantes na construção e formação da sociedade brasileira. Nós somos a história. Da senzala até aqui, nossas ancestrais lutaram por justiça e inclusão e continuamos resistindo, pois “nossos passos vêm de longe”. Silenciadas pela história, pelo racismo e sexismo, violentadas pelos senhores escravocratas, nossa luta por equidade se desenvolve, na contemporaneidade, na pós-abolição. Cento e trinta anos depois e ainda temos os piores indicadores sociais, culturais e ambientais. A escravidão deixou como legado nossos corpos marcados pela exclusão e pela imobilidade social. Nossa participação no movimento feminista brasileiro ganha visibilidade no século XX, no Brasil, na chamada terceira onda do feminismo, mais precisamente a partir do final dos anos 1970 e 80. O movimento negro e o teatro experimental do negro avançaram no enfrentamento ao racismo, contudo não discutiam o machismo e o sexismo. Ângela Davis junta gênero, raça e classe. No Brasil, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e outras Mulheres Negras perceberam a necessidade de criar um movimento que fosse protagonizado somente por Mulheres Pretas. O feminismo começou a empretecer — feminismo negro. Estava lançada a questão — Feminismo Negro no Palco da História, como disse e escreveu Lélia. Porém, nossa contribuição, nossa resistência vêm de longe. Desde os quilombos, atravessando os terreiros de Candomblé, passando pela pequena África, pelo samba, por Tia Ciata até agora, na Marcha das Mulheres Negras, onde continuamos marchando para resistir aos agravos do machismo, do racismo, da intolerância.
Poderia dar um panorama de quanto a sociedade brasileira avança, resiste e restitui depois de 130 anos da abolição da escravatura?
Não me parece tarefa fácil falar do peso, avanços e recuos depois de 130 anos da aprovação da Lei Aurea. Discutir, criar estratégias de resistência para combater o racismo no Brasil em pleno século XXI, não é orgulho para Nós, Pretas e Pretos. Conforme mencionei acima, “…ainda temos os piores indicadores sociais, culturais e ambientais. A escravidão deixou como legado nossos corpos marcados pela exclusão e pela imobilidade social…” A Lei de 1888 não deu conta de erradicar o racismo que sempre sustentou o processo escravocrata brasileiro e os privilégios da Branquitude enquanto sistema.
No Brasil de 2018, 55,4% da população se identificou como preto ou pardo e ainda somos tratados como minoria por aqui. A Constituição de 1988, nossa Carta Magna, destaca que somos todas, todos iguais sem distinção ou discriminação de raça, sexo, cor, credo, mas o racismo não nos dá tréguas, se firma no imaginário social, é estrutural, estruturante e se reveste de vários modos. Ora racismo institucional, ora religioso, virtual, ele avança, se mantém e por aí vai. Racismo é crime inafiançável no Brasil, porém se mostra como injúria racial e apesar da Lei Caó, que criminaliza o racismo, não temos notícia da aplicação da lei na sua totalidade. Não há prisão no País por crime de racismo. E já se passaram 130 anos da Abolição. É desse jeito…
Contudo, estar falando dessas e outras questões nossas, da população Preta, das políticas públicas que conquistamos e estão na corda bamba na sua aplicabilidade, implementação, o Ciclo de Debates da Blooks, a presença de autoras, autores Pretas, Pretos faz-se muito necessário.
A Juventude Preta da Academia e da Periferia tem provocado mudanças, haja visto a realização do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul — Brasil, África e Caribe aqui no RJ. A Literatura Negra no Brasile no mundo estão tendo destaque, a candidatura de Conceição Evaristo à ABL e o intercâmbio de escritores de países Afro-Atlânticos, a presença de uma Escrita Preta, obras, textos participando de eventos literários com a FLIP, a FLUP, o LER-Salão Carioca do Livro, é um avanço nesse cenário que insiste na exclusão e invisibilidade da maioria da população brasileira. Somos ausentes nos espaços de poder, no Congresso, no Parlamento, e pra Nós, Mulheres Negras, a situação é pior. Como escreveu Conceição Evaristo “precisamos estilhaçar a máscara do silêncio”. E a Blooks está nesse caminho, aliada à luta antirracista.
Você participará da programação do Primeiro Ciclo Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações na Blooks Rio. Qual a importância dessas iniciativas dentro de um projeto de educação antirracista num país como o Brasil?
Carlos Moore, no seu livro Racismo à Brasileira, escrito numa perspectiva antirracista nos fornece subsídios para um maior entendimento do racismo no Brasil. O Brasil não se considera um País racista, os racistas não se acham racistas, mas há racismo a toda hora no cotidiano. Equação difícil de resolução, não acham? Nesse sentido, essa iniciativa da Blooks Rio com a sugestiva chamada de Primeiro Ciclo Outra História do Brasil: Resistências e Reparações inauguram debate urgente e necessário, pois como primeiro, se pressupõe que outros hão de vir para reforçar a luta para “estilhaçar a máscara do silêncio” como diz Evaristo.
Ângela Davis é categórica e precisa ao afirmar que “não basta não ser racista, é necessário fazer a luta antirracista”.
E aí Lélia Gonzalez com seu Pretoguês iria perguntar “Cuméqui é”? ainda tá desse jeito?
È a luta continua…
Obrigada pelo convite, pois, Pretas e Pretos precisamos deixar de ser Exceção e virar Regra …dando uma dica do meu novo texto…reflexões de Vilma Piedade.
Fonte: https://medium.com/blooks/entrevista-com-vilma-piedade-addc99d9f11