A escravidão e a vida de todos nós

 

 

 

Saidiya Hartman: “A história da escravidão moldou a vida de todos nós”

Por Stephanie Borges, da Revista Gama

Uma das principais intelectuais da atualidade, escritora norte-americana lança ‘Perder a Mãe’ no Brasil. Ela fala a Gama sobre a importância de honrar vidas apagadas pela história e de como a escravidão explica as desigualdades até hoje

O pensamento de Saidiya Hartman extrapola o mundo acadêmico. Suas ideias sobre a reprodução de violências nos arquivos influenciaram as memórias da escritora Carmen Maria Machado, seu conceito de sobrevida da escravidão aparece nos ensaios poéticos de Claudia Rankine e sua estratégia de fabulação crítica estimula autores, cineastas e artistas na diáspora.

Professora de Literatura Comparada da Universidade de Columbia e cofundadora do The Sojourner Project, uma academia online de Estudo Negros formada por artistas e intelectuais de diferentes campos do conhecimento para pensar e debater diversos aspectos vida negra contemporânea, Hartman afirma que olhar para o passado é uma forma de compreender como as desigualdades perduram e buscar outras linguagens e estratégias para transformar o presente.

“Perder a Mãe — Uma jornada pela rota atlântica da escravidão”, primeiro título da autora lançado no Brasil pela Bazar do Tempo, mistura autobiografia, um relato de viagem pela rota do tráfico transatlântico em Gana e reflexões sobre a pesquisa acadêmica, as possibilidades da escrita especulativa e os limites éticos ao lidar com documentos históricos. Embora possar ser lido como um livro de memórias, apresenta algumas ideias centrais da produção de Hartman até o momento e provoca os leitores brasileiros a refletirem sobre o nosso legado de 388 anos de escravidão em pleno século 21.

Os vários diálogos possíveis entre o pensamento de Hartman e a realidade brasileira encorajaram a publicação de suas obras no país neste e no próximo ano. O ensaio “Vênus em Dois Atos”, que desdobra conceitos elaborados em “Perder a Mãe”, integra a antologia “Pensamento Negro Radical”, editada em uma parceria entre as editoras Bazar do Tempo e Crocodilo, dobradinha que também é responsável pelo lançamento de “Cenas de Sujeição” em 2022. Também será publicado no ano que vem seu título mais recente, “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”, vencedor do National Book Critics Circle Award em 2019, com tradução de Cecília Floresta pela editora Fósforo.

Como começou o seu interesse pelos arquivos?

Saidiya Hartman | Com meu bisavô materno. Quando eu tinha uns 12 anos, ele me levou por um passeio de carro pelo interior e me contou o que ele sabia da história de nossa família na escravidão. O que ficou evidente para mim, na época, era como a escravidão ainda moldava a paisagem. Enquanto dirigia pela estrada, meu bisavô apontava para aquelas grandes fazendas de monocultura e dizia: “Essa terra era propriedade de pessoas negras, aquele campo era de uma família negra”. Ele também me contou sobre o pai dele, que tinha uma propriedade, foi assassinado e a terra foi roubada por pessoas brancas. Então, aos 12 anos, tudo isso foi um choque. Na pós-graduação, quando comecei a pesquisar sobre a escravidão, tive uma experiência muito estranha. Uma vez, estava lendo narrativas de escravos na biblioteca de Yale e vi uma entrevista que tive certeza de que era da minha tataravó. Em linhas gerais a história batia totalmente com o que o meu bisavô tinha me contado sobre a mãe dele. Anotei as referências e quando voltei para copiar a entrevista, não conseguia encontrá-la em lugar nenhum. Fiquei me perguntando: Será que minha memória está me pregando uma peça? Eu imaginei que li uma entrevista parecida? Acho que essa história diz muito sobre o desejo que temos pelas nossas histórias e sobre como herdamos essa fome por elas.

No entanto, os arquivos da escravidão não são um material simples de se trabalhar. Você poderia comentar um pouco sobre esse aspecto?

SH | Há um grande arquivo da história da escravidão nos Estados Unidos. Imagino que os EUA tiveram uma das maiores populações de escravos alfabetizados nas Américas, pois há centenas de relatos sobre a escravidão ou autobiografias. Embora existam esses testemunhos, ainda assim uma quantidade imensa de material foi produzida do ponto de vista dos donos de escravos. Há muitos documentos, mas é como olhar o mundo por um espelho distorcido. Você pode distinguir a configuração geral das coisas, mas sabe que tudo aquilo era desfigurado, fora de proporção. O meu desafio era como usar esse material. Os arquivos são tão violentos, tão racistas, como posso usá-los para tentar contar uma história radicalmente diferente? Como posso usá-los para desafiar a hierarquia intelectual entre os “sujeitos do conhecimento” e os que foram constituídos como “objetos do conhecimento” naqueles documentos. Sou obcecada por essas questões há quase três décadas. E sinto que a fabulação crítica, a transposição dos arquivos, permitem que nós nos conheçamos de um jeito diferente. Eu trabalho de forma intuitiva, quase instintiva, e os materiais que encontro acabam confirmando o desejo pela liberdade, o desejo de existir de um jeito que não é determinado por um roteiro criado pelos donos de escravos nem pelos colonizadores.

“Perder a Mãe” discorre sobre a rota do tráfico transatlântico e apresenta reflexões suas. Quando concebeu o projeto, pensou que escreveria sobre si?

SH | Não. Sou uma pessoa tímida e reservada, a última coisa que eu queria era escrever sobre mim. Mas quando fui à Gana percebi que não havia um arquivo da escravidão lá. Há cópias do arquivo holandês e réplicas do arquivo colonial que eu poderia encontrar na Holanda ou no Reino Unido. Quando me confrontei com a ausência de um arquivo e pensei: o que eu vou fazer? Passei um ano lá em uma condição de ansiedade e desespero. No entanto, uma coisa muito boa foi que participei de um grupo com pesquisadores que vinham de vários países da África Ocidental. Só havia duas pessoas na diáspora no grupo, eu era uma delas. Nós percorremos as rotas dos escravos em Gana e coletamos histórias orais. Observamos como as pessoas viviam nas regiões que lucraram com tráfico escravagista. Conversamos com os descendentes dos colaboradores, ouvimos os que foram violentados pela brutalidade do tráfico nas regiões em que o povo foi vendido. Registramos como eles se lembravam da escravidão e reunimos um conjunto de relatos conflitantes. Quando voltei para os EUA, pensei “Não há um livro a ser escrito”. Entretanto, dois colegas pesquisadores disseram “Não, Saidiya, você precisa se colocar nesta história” e respondi “Mas eu não quero me colocar”. Eles argumentaram: “A sua perspectiva como alguém da diáspora é muito importante”. E de certa forma, uma das primeiras questões quando comecei a escrever “Perder a Mãe” foi: Como eu descrevo um encontro com o nada?

Seu relato é atravessado por desconfortos. Havia vergonha de falar sobre a memória da escravidão. O que pensa sobre a relação entre a vergonha e o silêncio?

SH | Em Gana, a reação de muitas pessoas era questionar “Por que você menciona ter antepassados escravos?”. Havia um estigma em relação a isso. Em parte, entendo que não é uma vergonha minha, que eu tenha que suportar. É um legado de todos, porque não podemos pensar no capitalismo sem pensar no tráfico transatlântico e na escravidão. Não podemos pensar no humanismo ocidental, no Iluminismo, sem considerar a escravidão nas Américas. É uma história que moldou as vidas de todos nós, embora as pessoas negras sem dúvida carreguem o peso dessa história e lidem com marcas duradouras, como ter a humanidade questionada; as condições de pobreza que perduram; a precariedade e a morte prematura; e a vulnerabilidade diante da violência do Estado. Nós ainda vivemos uma hierarquização do humano que foi criada no contexto da escravidão transatlântica. Vemos nos EUA e no Brasil as várias maneiras como tudo isso ainda interfere no presente, determina o acesso à educação, as oportunidades na vida. É importante falar sobre isso porque do contrário as pessoas naturalizam a desigualdade extrema na distribuição de recursos e de riquezas. Naturalizam as disparidades como uma espécie de “condição racial” que nada tem de natural, que foi produzida pela história e pelo processo social. Algumas pessoas tentaram simplificar “Perder a Mãe” como “a busca de uma mulher”, mas é um livro sobre a escravidão, o colonialismo, o subdesenvolvimento do sul global. Tudo isso está junto naquelas páginas. Foi importante para mim escrever esse livro para dizer vivemos na pós-vida da escravidão e não podemos ter a esperança de mudar ou transformar qualquer coisa ao menos que realmente pensemos sobre essa história.

Tem a impressão de que é uma dinâmica comum na experiência de mulheres negras: nós precisamos conhecer realidades duras, mas quando falamos delas, somos consideradas desagradáveis?

SH | Sim, nós que somos difíceis (risos). É exatamente assim. Falei de muitas coisas desagradáveis neste livro, leitores reagiram com sentimentos muito fortes. Recebi o retorno de um senhor negro dizendo que não precisamos falar essas coisas em público. Essa era uma ideia comum em relação às diferenças e fricções da diáspora. Afinal, como nós falamos das formas de hierarquia e exploração de classe e das sociedades africanas? Esse tema não era bem-vindo. No entanto, o livro termina com o capítulo “Sonhos Fugitivos” porque estou interessada em qual tipo de linguagem é capaz de criar conexões para os que foram escravizados, colonizados, despossuídos e para os que ainda estão vivendo vidas precárias, consideradas descartáveis. Para mim não é a linguagem do parentesco. É a linguagem da liberdade e do sonho. São os sonhos fugitivos, o desejo de desmantelar essas estruturas e criar um espaço onde possamos prosperar. Quando pensamos no desejo diaspórico, as pessoas não querem pensar nas contradições, nos antagonismos, nas diferenças internas no continente africano. Então essa história não era bem-vinda. Quando uma mulher faz esse tipo de trabalho, é fácil ser rotulada como uma pessoa difícil.

Há um capítulo de “Perder a Mãe”, “O Livro dos Mortos”, no qual você usa a pesquisa nos arquivos como base para a escrita especulativa. Por que você decidiu contar a história de uma menina que morreu em um navio negreiro de diversos pontos de vista?

SH | Eu estava caminhando numa linha muito tênue. Por um lado, o meu treinamento como pesquisadora não me deixava me aventurar muito longe, mas foi importante escrever esse capítulo pois muitas ideias do meu trabalho foram usadas em “O Livro dos Mortos”. Eu queria escrever sobre essa menina não identificada que foi assassinada no convés de um navio negreiro e tentei recriar a experiência de estar a bordo do navio. Como no arquivo só havia algumas palavras sobre ela, precisei construir a história. Precisei das perspectivas do imediato, do médico e do capitão para preencher um pouco a narrativa e refletir sobre condições brutais que permitiram e resultaram na morte dela. Comecei a ler diversos estudos sobre os efeitos da fome e da desnutrição, e como afetam a consciência, pois há uma sensação de delírio. Quis abordar a experiência corporal dela, o que acontece quando um corpo é pendurado? E havia o desejo dela de retornar. Ela recusava a escravidão e por isso decidiu não comer. A partir daí trabalhei para preencher as lacunas lendo outras histórias nos arquivos, por exemplo, as poucas linhas sobre a experiência de mulheres capturadas a bordo do navio negreiro. Também me parecia haver um conflito entre as diferentes perspectivas, a violência do capitão que bate nela, o imediato que tenta ajudá-la, mas é impedido, o médico que observa e não faz nada. Ao estabelecer esses múltiplos relatos conflitantes, acho que alcancei um efeito Rashomon e isso foi essencial para criar um espaço para prestarmos atenção à vida dela. Vários leitores disseram que essa é uma parte difícil do livro, mas para mim, em termos de escrita também é, porque habitei o tempo e o espaço com aquela menina. É por isso que ao escrever “Vênus em Dois Atos” eu ainda pensava nela, nas questões de ética e representação na escrita. Como nós cuidamos das vidas que encontramos nos arquivos? Como não causar mais danos a essas vidas? Como não submetê-las a violências de outra ordem? Para mim, a fabulação crítica é pensar sobre o tipo de história especulativa que poderia surgir a partir do arquivo, é um tipo de não-ficção especulativa. Eu faço uso de estratégias do romance, mas ainda preciso dos documentos, nem que sejam apenas contornos das vidas reais daquelas pessoas. Acho essas pessoas fascinantes. Sinto que, na verdade, meu trabalho é honrar essas vidas. É por isso que não penso em escrever ficção. Quero honrar essas vidas que foram desvalorizadas e esquecidas.

O que você gosta de ler? Qual é o tipo de ficção que influencia a sua escrita? Você não escreve ficção, mas menciona Toni Morrison e Octavia Butler em seus textos.

SH | Eu amo romances de ideias. Um dos meus livros favoritos é “A Autobiografia de Minha Mãe”, de Jamaica Kincaid, é uma reflexão brilhante sobre a história da escravidão e do colonialismo. Adoro o trabalho do escritor alemão W. G. Sebald. Também amo a obra de poetas como Dionne Brand, M. NourbeSe Philip e Claudia Rankine porque são trabalhos conceituais que abordam problemas críticos. Elas refletem sobre a história, tentam desestabilizar as presunções corriqueiras e estão criando beleza a partir dessa grande história de terror que tem sido a vida negra de uma forma coletiva. São escritoras brilhantes com obras que desafiam os gêneros literários.

No seu livro mais recente, você pesquisou sobre a vida de mulheres e meninas negras que não se conformaram com os papéis de gênero e convenções sociais. Você poderia comentar sobre a afinidade com o final de “Perder a Mãe”?

SH | Você tem razão ao enxergar um eco entre os livros. Depois de escrever dois livros sobre escravidão e tive que viver uma zona psíquica muito intensa para conseguir fazer isso. Então resolvi escrever algo que pudesse ser bem diferente. Na verdade, eu estava lidando com a pergunta que fiz em “Vênus em Dois Atos”: “Teria sido melhor deixar essas meninas como as encontrei?”. O quanto posso ir além do arquivo? Qual é o limite da não-ficção? Decidi explorar esse limite. No caso das mulheres, pessoas queer e dissidentes de gênero em “Vidas Rebeldes” era um outro tipo de arquivo. O estado produziu um vasto material, como registros policiais, as fichas dos que eram considerados criminosos, desviantes etc. Havia muito material, que precisamos reconhecer, é desfigurado, mas há fotos, entrevistas com a família e os amigos, cartas, todo o tipo de rastro sobre as vidas delas, suas histórias, aspirações. Senti que poderia me arriscar mais, porque havia mais material com o que trabalhar. Então pensei, se vou pressionar o limite, tenho que estar disposta a ultrapassá-lo, porque ao me manter fiel ao arquivo, a quem dedico à minha fidelidade? Ao poder, ao saber colonial. Defini os termos do projeto do livro ao trabalhar no “An Intimate History of Slavery and Freedom”, em que conto a história de Mattie Jackson. Quando li o arquivo, achei a vida dessa jovem fascinante. Uma das coisas que eu sabia sobre Mattie era do interesse dela por certas formas de experimentação sexual. Tentei pensar: o que isso representava para uma jovem para quem todos os outros caminhos estavam fechados? Eu sabia que Mattie disse várias coisas: “Eu quero sexo. Eu desejei aquilo. Segui por um caminho errado. Não era o que eu queria”. O relato dela é totalmente contraditório. Refleti sobre o que significa pensar sobre como se dá o despertar sexual e correr o risco de tentar descrevê-lo. Ainda assim não é ficção, o resultado do primeiro experimento dela foi o abandono, mas ela não foi destruída por isso, nem se arrependeu. Mesmo no contexto do arquivo é possível perceber que a atitude dela era “eu tenho uma fome pelo mundo, por experiências”. E se ela se deu essa licença, sinto que isso também me dá licença ao contar essa história.

O seu trabalho envolve o contato com histórias bem difíceis. O que você faz para cuidar de si? Como é que você descansa?

SH | Uma das coisas que faço é jardinagem, levo isso bem a sério. Quando estou com as mãos na terra tenho a sensação de me envolver com um tipo de trabalho ancestral. Como sou uma pessoa que vai ao extremo, às vezes passo oito horas cuidando do jardim e fico exausta. Mas isso me faz pensar no que significa ser forçada a trabalhar até a exaustão. Muitos de nós não tivemos essa experiência. Então penso o que isso significa. Além disso, nos EUA existe uma tradição afro-americana vernacular de enfeitar os jardins com espelhos e outros objetos que estão relacionados a cultos e práticas de origem africana. No jardim você pode observar o ciclo da vida, para mim é como estar diante do mar. Quando cuido do meu jardim, percebo meu pequeno lugar no vasto arranjo de coisas que existem na Terra e na vida. E me sinto muito bem de ser apenas um pequeno aspecto que faz parte de todo um ecossistema. 

Fonte: https://www.geledes.org.br/saidiya-hartman-a-historia-da-escravidao-moldou-a-vida-de-todos-nos/?fbclid=IwAR3I9v8Cf_fz_BSYy8PlORoNzX-QuywabpnRvckvaB0z-TsloyW7LY4_Xd0

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